Hidrovia encalhada no desuso

Especial - Transporte fluvial

Hidrovia encalhada no desuso

Cinco anos após o A Hora percorrer 145 quilômetros do Porto de Estrela até Porto Alegre a bordo do Trevo Azul, a situação piorou. A reportagem relembra os personagens e aborda as falhas e deslizes do modal em relação ao projeto original, ouve empresários do setor e analisa as condições do transporte pluvial pelo Rio Taquari

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Hidrovia encalhada no desuso
Vale do Taquari
Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

A viagem entre os portos de Estrela e Porto Alegre dura em média 12 horas. São aproximadamente 145 quilômetros navegando sobre os rios Taquari e Jacuí, até desembocar no cais da capital gaúcha, instalado junto à Av. Mauá. Em abril de 2013, a reportagem do jornal A Hora acompanhou uma das últimas travessias realizadas pela Navegação Aliança. Desde então, a empresa abandonou a rota.

O comandante do navio utilizado naquela viagem – o Trevo Azul – era Maurício Mendonça Alves, hoje com mais de duas décadas de experiência. Com 89 metros de comprimento por 15 de largura, a embarcação sofreu para cruzar as sinuosas – e rasas – curvas do Taquari, principalmente após a barragem de Bom Retiro do Sul.

Por quatro vezes, o casco do navio chocou-se com os cascalhos aprumados no fundo do leito do rio. Sem investimentos desde então, o problema persiste. Diante disto, e muito também pela falta de atrativos locais para as grandes empresas de navegação, a Aliança não realizou mais o trajeto Porto Alegre-Estrela desde aquele ano.

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Assim como a rota à capital, a equipe até então comandada por Alves se desfez em pouquíssimo tempo. A primeira baixa foi trágica. Pouco menos de um mês após a reportagem acompanhar a tripulação, um dos integrantes, Jair Fonseca, que era marinheiro de convés há pouco mais de 10 meses, morreu afogado após cair do convés do mesmo navio Trevo Azul, em Pelotas. Ele tinha 44 anos.

Renê dos Santos, contra-mestre, Claudiomiro Duarte, mestre, Luis Nobrega, chefe de máquinas, Ícaro Heidrich, marinheiro de máquinas, e Itari Macedo, cozinheiro, eram os demais integrantes daquela trupe.

Loni de Britto, que atuou como “prático” do navio no trecho do Rio Taquari devido ao alto conhecimento dele acerca do leito, também não faz mais parte da equipe do comandante. Alves, aliás, comanda hoje a embarcação mais nova da empresa, o navio denominado Frederico Madörin, construído em 2009, e com capacidade para transportar até 4,5 mil toneladas. “Ficou só na memória.”

Trecho e os responsáveis

Foi também a partir de 2013 que a hidrovia do rio Taquari começou a trocar de “gerente”. Naquela época, a responsabilidade pelo trecho era da Administração de Hidrovias do Sul (AHSul), órgão ligado ao Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit). Meses depois, passou para o controle da Secretaria Especial dos Portos (SEP).

Durante a gestão do governador, Tarso Genro, em agosto de 2014, a estadualização do Porto de Estrela alterou a gestão do trajeto.Os serviços que antes eram de responsabilidade da União passaram a ser gerenciados pela Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), órgão então ligado à Secretaria Estadual de Infraestrutura e Logística (Seinfra).

Com a mudança, o Porto de Estrela passou a ser controlado pelo Estado. Pelo acordo de transição, o governo estadual teria dois anos para formalizar e colocar em operação uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para gerenciar a estrutura. O período venceu em agosto de 2016, sem que a empresa pública fosse criada.

70 mil toneladas em 2013

Naquele ano, a Navegação Aliança já respirava por aparelhos. Foram 27 viagens entre Estrela e o Porto de Rio Grande, traduzidas em 70 mil toneladas transportadas no navio Trevo Azul. Os números já eram irrisórios se comparados ao início da década de 80, por exemplo, época em que três empresas com sedes em Lajeado, Bom Retiro do Sul e Taquari criaram, após fusão, a Aliança.

Naquele período inicial, o montante anual só no trecho entre Estrela e Rio Grande chegava a ser 10 vezes superior, com cerca de 700 mil toneladas transportadas por via fluvial. Os canais recebiam serviços constantes de desassoreamento e estavam sempre bem sinalizados. Muito diferente do modelo atual, diretor da Aliança, Ronei Calgaro. Farelo e grãos de soja eram os principais produtos.

 Jornal A Voz do Alto Taquari, de junho de 1958, anunciava a implantação da Barragem Eclusa de Bom Retiro do Sul, que ficou pronta apenas em julho de 1976

Jornal A Voz do Alto Taquari, de junho de 1958, anunciava a implantação da Barragem Eclusa de Bom Retiro do Sul, que ficou pronta apenas em julho de 1976

“Porto será rebaixado de categoria”

O chefe do departamento de desenvolvimento econômico da Seplade de Estrela, Guilherme Engster, está em contato permanente com a Secretaria Nacional de Portos, outro órgão criado em março de 2017 para gerenciar as hidrovias, e ligado ao Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil. É lá que repousa desde o ano passado o pedido do governo estrelense pela municipalização do porto.

A administração do prefeito Rafael Mallmann quer assumir a área portuária. “O porto será rebaixado de categoria. Será um porto de trasbordo. Hoje ele é um porto como o de Rio Grande, ou o de Santos, chamado de “Porto Organizado”, afirma Engster. “Será para embarcações menores, como por exemplo, barcaças, chatas”, complementa o agente público.

Este será o primeiro passo para tentar reativar a hidrovia do Taquari na região. “Pretendemos, juntamente com as empresas do Vale do Taquari, criar parcerias publico-privadas, para que essas possam escoar seus produtos através do porto”, resume. Entretanto, ele não soube precisar a forma efetiva como será feito esse convênio com as empresas. “Não temos nada disso ainda pensado. Vamos esperar ter o documento e, aí sim iremos ver o que faremos.”

Pioneiros na navegação

A navegação no Rio Taquari iniciou em meados do século XIX. Em 1840, o senhor Louzada – Barão de Guaíba -, um dos primeiros fazendeiros de Bom Retiro do Sul, já possuía uma frota de botes e canoas movidos a remo e a vela. Com esses, se comunicava com o comércio de Porto Alegre, onde vendia os produtos.

Na década de 1870, João Teixeira, outro fazendeiro, comprou o lanchão chamado “Flor do Taquari”. Com esse, transportava produtos coloniais de Estrela – onde em 1924 foi inaugurado um pequeno porto – e Taquari para a capital gaúcha. No início do século XX, já existia a Companhia de Navegação Arnt. Em 1914 esta empresa iniciou com o primeiro barco-a-vapor para a condução de passageiros.

Até o fim da década de 40, a companhia ostentou o pioneirismo. Possuía cinco vapores, nove gasolinas, dez chatas e trinta embarcações pequenas. Quatro embarcações eram luxuosas, como o Itália, o Osvaldo Aranha e o Porto Alegre. Este último era o maior de todos e só fazia a rota de Taquari a Porto Alegre.

Anúncio da já extinta Navegação Arnt, publicada em 1941. Viagens de “Lageado” a Porto Alegre eram constantes

Anúncio da já extinta Navegação Arnt, publicada em 1941. Viagens de “Lageado” a Porto Alegre eram constantes

Barragem, também, em Taquari

Tudo começou a mudar a partir de junho de 1958, há 60 anos. Naquele mês foi assinado o contrato de construção da Barragem de Bom Retiro do Sul. O então governador, Ildo Meneghetti, foi quem garantiu algo em torno de “CR$ 600 milhões” para a aguardada obra de infraestrutura. Estava projetada para ser entregue até 1962.

Reportagem do extinto jornal Voz do Alto Taquari anunciava o início das obras para aquele mês e incluía, no texto sobre o projeto original, uma usina com “cinco turbinas com uma potência total de 21.000 kw”. Mas o objetivo principal da eclusa era “permitir navegação por mais 35 quilômetros, até a cidade de Arroio do Meio”.

As obras iniciaram em 1959 e, meses depois, foram suspensas. Os serviços ficaram paralisados por 10 anos, reiniciando em 1969. Em 1973, reportagens locais informavam que o novo projeto de navegação para o Rio Taquari previa, também, uma segunda barragem. Esta, no município de Taquari, e que nunca saiu do papel.

Além desta segunda barragem, o projeto original do entroncamento hidro-rodo-ferroviário também previa uma segunda ponte sobre o rio Taquari entre Lajeado e Estrela. A estrutura ligaria o porto à rua Osvaldo Aranha, via que deveria ter sido ampliada em 20 metros e interligada com a BR-386, ainda na década de 70, conforme a proposta do governo.

Os serviços na eclusa de Bom Retiro do Sul foram concluídos em 1976, mais precisamente no mês de julho. Quase 20 após a assinatura do contrato. Um ano e quatro meses depois, foi inaugurado o novo Porto de Estrela, iniciando esta nova etapa da navegação no Vale do Taquari.

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Entrevista

“Nesta região, operamos só até a cidade de Taquari”

Entrevista com Ronei Calgaro, Diretor na Navegação Aliança Ltda (Trevisa Investimentos S.A.)

A Hora – Em abril de 2013, acompanhamos uma viagem a bordo do navio Trevo Azul, entre o Porto de Estrela e o Porto de Porto Alegre. Quantas viagens foram realizadas naquele ano?

Em 2013, realizamos 27 viagens com destino a Rio Grande, transportamos aproximadamente 70 mil toneladas de granéis oriundos do complexo soja (farelo de soja e soja em grãos) para exportação, e a operação infelizmente acabou em meados de agosto daquele mesmo ano.

A Hora – E quantas viagens a Navegação Aliança realizou entre Estrela e Porto Alegre nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017? 

Nesta região e neste período, operamos somente até a cidade Taquari, não realizando viagens envolvendo o Porto de Estrela, devido a mudança de cenário ocorrida principalmente com a parada de processamento de soja na região.

A Hora – Como a direção da empresa avalia o trecho do Rio Taquari, e o que precisaria ser feito para melhorar?

O rio tem suas limitações e sofre com a sazonalidade (intempéries) e também com o assoreamento, exigindo uma manutenção da hidrovia que envolve basicamente dragagem e balizamento (sinalização da hidrovia), os quais conjuntamente com as condições da eclusa, acabam sendo os principais cuidados que propiciam uma condição segura e eficiente de navegação na região.  Mas não basta apenas ir nesta linha de ação quanto as questões técnicas da condição da hidrovia, sem estar vinculada aos aspectos de desenvolvimento comercial do Porto de Estrela, para atrair negócios que possibilitem a viabilidade de utilização da mesma.

A Hora – Como a direção da empresa avalia o Porto de Estrela, e o que precisaria ser feito para melhorar?

O agronegócio e a demanda industrial precisam estar juntos com os principais armadores, consolidando e gerando uma demanda mais perene ao longo do ano, para novamente direcionar a utilização do Porto de Estrela, explorando ainda mais o potencial da região e possibilitando investimentos que propiciem o direcionamento da carga para esse modal, conjuntamente com investimentos nas operações de carga/descarga para não penalizar o tempo da embarcação no porto, revitalizando desta forma este importante ponto hidroviário de nosso estado.

Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br

 

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