No cabelo, orgulho da ancestralidade

NOVEMBRO NEGRO

No cabelo, orgulho da ancestralidade

Das tranças ao black power, o cabelo da mulher negra carrega história e identidade. Salões e produtos especializados, hoje, facilitam o empoderamento e incentivam as pazes com os cachos

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No cabelo, orgulho da ancestralidade
As irmãs Débora e Cátia assumiram os cachos e incentivam outras mulheres negras a aceitarem sua identidade. Crédito: Júlia Amaral
Vale do Taquari

As irmãs Débora Tatiane da Silva, 37, e Cátia Betânia da Silva, 34, compartilham a mesma memória de infância: os dias em que a mãe e a tia faziam tranças em seus cabelos cacheados. Para deixar o penteado ainda mais bonito, elas apostavam em enfeites coloridos junto das mechas.

“Nossa mãe sempre nos fez entender que somos lindas assim”, lembra Débora. Mas, mesmo com uma educação que se distanciava da ideia de que o único cabelo bonito era o liso, as irmãs passaram por momentos difíceis na adolescência.

Foi nessa época que elas buscaram produtos para alisar os cachos. O objetivo era melhorar a autoestima mas, como ainda não havia tratamentos especiais para esse processos químicos, era comum que os fios ficassem ressecados e quebrassem.

Além disso, para fazer o alisamento era preciso viajar até Porto Alegre. “Então, além de estragar nosso cabelo, também era caro de fazer”, recorda Cátia. Foi pesquisando formas de solucionar o problema que a dupla descobriu o mega hair.

“Aqui na região nós fomos as primeiras a usar o mega. Todo mundo perguntava o que era, como era. Diziam que a gente parecia americanas”, conta Débora. Como em 2010 o assunto ainda era novidade, Cátia começou a estudar a técnica e, hoje, é cabeleireira especializada em cabelo afro.

Para todos os fios

Conforme Cátia, a aplicação de mega hair em cabelo liso é diferente da técnica do crespo. Mas, em todos os casos, o mega é uma extensão do cabelo. Na prática, é uma interação entre fios sintéticos e naturais para aumentar o comprimento e volume.

Pode ser usado, inclusive, durante a chamada “transição capilar”, momento em que o ideal é ficar sem fazer procedimentos químicos para que o cabelo cresça em sua forma natural. “O cabelo é a moldura do rosto, e nós podemos transitar por vários tipos”, afirma Débora, que hoje é consultora de estilo.

“Antes eu chegava nos lugares e diziam que eu era diferente. Com o tempo eu pensei que com diferente eles queriam dizer ‘como uma mulher negra pode se vestir bem, tá bem posicionada”, conta. Para a profissional, uma pessoa que se sente bem com a imagem que reproduz é muito mais confiante e entende o seu valor.

Cátia destaca que no salão “Pimenta Negra”, em Lajeado, ela atende mulheres com as mais variadas texturas de cabelo, inclusive lisos. Quando uma cliente de fios crespos ou cacheados chega no salão, Cátia sabe que o trabalho não acaba no corte ou no penteado. É preciso repassar todas as técnicas de cuidado, que nem sempre são bem divulgadas, para que os fios permaneçam bonitos.  “Eu sempre deixo aquela janelinha aberta: quando tiver alguma dúvida, me chama”, diz a cabeleira.

Entrelaçadas
Essa rede que se cria entre as mulheres crespas e cacheadas é bastante antiga. A trancista Camila Marques lembra das mulheres da rua que faziam tranças umas nas outras. A cultura, no entanto, não dobrava a esquina.
“A gente sempre fez isso, mas hoje entendemos que é um negócio. Por que eu não posso ter um salão de beleza para mulheres negras?”, indaga. Em breve, ela deve inaugurar o salão Rainhas Nagô, em Lajeado.
Para o espaço, Camila tem um objetivo em mente: fazer com que as mulheres se sintam como rainhas. Conforme o projeto, logo na entrada do local haverá um quadro contando toda a relação das tranças com o povo negro.

“A trança nagô foi usada no período da escravidão para fazer mapas na cabeça, eram rotas de fuga. Então é mais do que um penteado, é um caminho para liberdade”, destaca Camila.

A profissional lembra que cada tipo de trança era feita por uma tribo diferente, por isso, hoje se tem uma gama de possibilidades e, quem tivesse mais tranças na cabeça, era tratado como realeza.


“O cabelo é uma marca identitária” –  Entrevista | Karen Pires, historiadora

Como inicia a história dos povos africanos aqui na região?

A vinda dos primeiros africanos se deu como mão de obra escravizada. Pelos estudos, isso foi no século XII, também com a inserção dos portugueses aqui, que recebiam sesmarias, terras da coroa portuguesa para produzir, com mão de obra africana. A região em si teve um número significativo de mão de obra escravizada.

Foram homens, mulheres, crianças comercializadas. Levantamos uma documentação de compra e venda, cartas de alforria, registro de batismos, casamentos, óbitos. Identificamos muitas pessoas escravizadas nascidas em África e muitos crioulos, escravizados nascidos no Brasil. Tivemos essa diversidade.

Quais as principais heranças dos povos africanos encontradas no Vale?

Nós tivemos uma diversidade de nações africanas aqui, como os Nagôs, pessoas de Moçambique, Angola, Congo, Cabindas. No comércio, era intensa a troca cultural. Os senhores não queriam adquirir pessoas da mesma nação por medo de rebeliões, então faziam uma diversidade para que não se “entendessem entre si”.

Só que a resistência contra o sistema perpetuou todo o período de escravidão. Hoje, as religiões de matriz africana são uma herança do período de escravidão. Mesmo dentro do sistema escravista, a religiosidade era exercida. O Rio Grande do Sul é o estado que mais tem terreiros no Brasil. O culto aos orixás, os rituais, também vieram ao Brasil a partir desse período. A culinária, as músicas, a dança. Temos hoje um vocabulário repleto de palavras africanas, como o “cafuné”, por exemplo.

Na reportagem, falamos muito sobre as tranças, quais são os simbolismos que elas carregam?

O cabelo significa resistência para o povo negro, no sentido de afirmar sua identidade. Porque o cabelo é uma marca identitária do povo negro. As tranças também eram uma estratégia, porque a partir do trançado do cabelo se traçava rotas de fuga. Hoje, assumir o cabelo afro, o black, a tança, é uma questão de identidade, de se afirmar como povo negro perante uma sociedade ainda racista. O povo negro sempre resistiu e continua resistindo, seja na herança cultural, na afirmaçlão do seu cabelo, do seu jeito de se vestir, isso tudo faz parte de sua resistência.

 

Camila é trancista há anos e, agora, se prepara para abrir o Salão de beleza “Rainhas Nagô”. Crédito: Júlia Amaral

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