O efeito terapêutico de preparar e dividir o pão

para fugir da rotina

O efeito terapêutico de preparar e dividir o pão

Imagine dedicar um sábado para conhecer gente nova, colher legumes e temperos em uma horta doméstica, preparar uma refeição completa (sem a pretensão de acertar tudo), em um ambiente de cooperação, onde cada ajuda como pode – um lava a…

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O efeito terapêutico de preparar e dividir o pão

Imagine dedicar um sábado para conhecer gente nova, colher legumes e temperos em uma horta doméstica, preparar uma refeição completa (sem a pretensão de acertar tudo), em um ambiente de cooperação, onde cada ajuda como pode – um lava a louça, o outro corta e por aí vai. Quando está tudo pronto, todos sentam à mesa, como em uma grande família, enquanto o aroma de comida enche a casa e alguém declama um poema ou toca uma música ou apenas conversa sobre o tema do dia.

É essa a dinâmica do Gastroterapia, um projeto da psiquiatra e professora de Gastronomia Michele Valent e do fotógrafo e jornalista Peter S. Krause. Segundo ela, a ideia surgiu a partir de uma experiência própria. Trabalhando cerca de 14 horas por dia, Michele decidiu fazer uma pausa programada para aprender Gastronomia. Morou por um tempo em Flores da Cunha, onde se formou na área pela Universidade de Caxias do Sul – instituição na qual leciona hoje.

Quando voltou, um grupo de amigos à procura de atividades para desestressar pediu que ela ensinasse culinária uma vez ao mês. Foi uma dessas alunas que deu o nome de Gastroterapia. Daquele pedido, em 2011, os encontros foram crescendo e atraindo cada vez mais interessados, especialmente profissionais liberais. O objetivo não é ensinar técnicas e sim retomar o contato com a natureza, com outras pessoas e com o preparo do alimento – etapa que tem sido terceirizada no dia a dia.

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Peter observa que, principalmente os trabalhadores de atividades intelectuais, como da área de Recursos Humanos ou Administração, por exemplo, que não têm resultados palpáveis em suas rotinas, acabam retomando o sentido de trabalho ao ver um prato finalizado. “Quando elas vêm para cá e entram nessa relação de trabalhar para produzir comida, plantar e colher, preparar e comer, essa construção dá sentido à atividade.”

Um sábado por mês, ocorre o encontro aberto. Inicia às 11h com a integração, quando Michele explica qual será o menu do dia. Depois, o grupo colhe as verduras e temperos na horta que o casal cultiva no terreno. São centenas de variedades, incluindo algumas pouco comuns no cultivo doméstico, como aspargo e couve ornamental.

Casal mora em Teutônia, onde também cultiva diversos alimentos e ervas

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“Outro dia veio um médico e ficou surpreso de ver com se forma o abacaxi na planta. Alunos de Gastronomia que nunca haviam visto brócolis no pé. Crianças que nunca viram tirar uma beterraba do solo”.

Quem percorre os arredores da casa ainda encontra muitas plantas alimentícias não convencionais (Pancs), como uma flor que tem gosto de pepino e outra com gosto de limão. É o colorido das pétalas, aliás, que atrai muitas crianças que não comem legumes e saladas.

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Após a coleta dos alimentos, é de hora de ir para a cozinha. Michele e Peter pré-preparam aquilo que dá mais trabalho, mas a ideia é que todo mundo coloque a mão na massa. Contudo, a distribuição do trabalho não é imposta. De forma natural, cada um vai assumindo as tarefas que consegue fazer.

Michele lembra do caso de um engenheiro que não tinha muita habilidade com o preparo do alimento, mas usou toda a sua habilidade lógica para fazer uma espécie de envelope com as folhas de bananeira que depois serviram de suporte para assar peixes. Em outra ocasião, uma cirurgiã fez cortes perfeitos para o sashimi. “Chegar num lugar livre de competição, onde tu pode colaborar, meio que te reprograma. É curativo.”

Lado lúdico da comida

De qualquer forma, o objetivo não é servir um prato sem erros. Aliás, lidar com frustrações também é algo que Michele procura trabalhar entre os participantes. Logo no início ela avisa que se as receitas não derem certo não tem problema; eles pedem pizza e fica tudo certo.

Todos os encontros têm um tema. A edição de junho, por exemplo, foi sobre sopas. No momento de sentar à mesa, Peter recitou um poema de Lewis Carroll (autor de Alice de País nas Maravilhas) sobre o alimento líquido. Em outra ocasião, levaram o produtor da farinha usada para preparar a polenta naquele dia.

Também já passaram por ali artistas plásticos que fizeram mandalas, músicos que animaram o encontro italiano com sons típicos; em janeiro, ocorreu uma feira de artes. No consultório, Michele percebe que o que falta para muitas pessoas é uma diversão sadia, poder interagir com outras pessoas sem discussões polêmicas e sem bebida alcoólica.

Encontros reúnem amigos e desconhecidos que querem aliviar o estresse

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“Uma estatística americana que diz que as pessoas gastam 20 minutos preparando a refeição e 38 minutos assistindo a um episódio de Masterchef. Estamos nos alimentando de imagens. Em vez de comer comida real, estamos na Matrix, comendo com garfo de plástico em embalagens de alimento ultraprocessado.”

Segundo a psiquiatra, em 2020, a depressão será a principal causa de morbimortalidade do mundo. Além disso, o Brasil é o campeão em transtornos de ansiedade. “Eu brinco que todo grupo tem o ‘cutucador de comida’, que põe a comida na panela e fica cutucando. Eu digo: ‘vamos trabalhar essa ansiedade.’”

Michele diz que não faz análise durante os encontros, mas trabalha para que todos se sintam bem. “Nesse jogo é que está a terapia da gastronomia: ousar, tolerar frustração, não se sentir inferior, assumir o protagonismo, trabalhar em conjunto, vencer inibições ou ficar confortável mesmo sendo tímido.”

Cogumelos da entrada à sobremesa

O encontro de julho ocorre no dia 21. Será o terceiro FunghiFest, um menu completo à base desses alimentos ainda pouco explorados. Segundo Michele, os valores variam de acordo com o cardápio, mas este ano as inscrições estão na faixa de R$ 80. Reservas podem ser feitas com o casal na fanpage Gastroterapia. As turmas são de dez a 20 pessoas.

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