Vale do Taquari – Todo dia, Armindo Miguel Zago,77, acorda às 4h30min. Liga o rádio e escuta as primeiras notícias. Prepara o mate. Depois de umas cuias, passa um café. Conta tão só com duas muletas, cujo auxílio é fundamental para caminhar, tratar os animais ou cuidar da lavoura.
O agricultor aposentado mora na localidade de Bela Vista do Fão, em Marques de Souza. Tem três filhos, oito netos e quatro bisnetos. Recebe visitas seguidas. Seja dos vizinhos, com os quais mantém amizade há décadas, ou da família. Na maioria dos dias, convive com as lembranças estampadas em fotos na parede da sala.
Assim como Zago, morando sozinho há seis anos, milhões de brasileiros enfrentam a mesma situação. No país, entre 1992 e 2012, a população de idosos que mora sozinha cresceu 215%, segundo o IBGE.
Pós-graduada em Geriatria, Márcia Gemeli mantém uma clínica no centro de Lajeado. Os 17 internos da instituição contam com serviços especializados.
Segundo ela, a decisão em deixar de morar sozinho depende da saúde do aposentado. Mesmo em boas condições, é preciso o acompanhamento dos parentes. Quando a saúde é debilitada, e o uso de medicamentos tem de ser periódico, a opção de ficar só em casa fica mais complicada.
Segundo ela, o maior medo dos idosos é se sentirem inúteis. “Essa sensação é mais visível no homem, pois sofrem mais de depressão”, frisa Márcia. Muitos têm a memória ativa, mas o corpo não corresponde.
Por isso, a atenção com quem mora sozinho deve ser redobrada. Alguns nunca admitirão a possibilidade de sair de casa, mas é a saúde o ponto fundamental e decisivo, avalia a geriatra. “É alto o índice de acidente doméstico com o idoso. Coisas simples podem ficar complicadas.”
Em números, a pesquisa do IBGE mostra que essa população passou de 1,1 milhão para 3,7 milhões em 20 anos.
Autonomia aos 77 anos
A dificuldade em se locomover não impede Zago. Ativo, o agricultor de Marques de Souza mantém a rotina de cuidado da lavoura, da casa e no trato dos animais. Faz o que gosta. Ajoelhado, enterra as ramas de aipim. Tamanha disposição desperta admiração dos vizinhos. “Me chamam de louco, mas louco seria se eu ficasse sentado”, ressalta.
Distribui para amigos e parentes a colheita. Neste ano foram 40 sacos de milho. “Lembro quando ordenhava 118 vacas numa manhã.” A maior queixa fica por conta de não ter condições de colher pinhão nas colinas, na parte alta da propriedade.
Os problemas começaram há 25 anos, quando sofreu um acidente grave. Conduzia um automóvel Volkswagen TL na BR-386, quando teve uma crise de pressão alta e desmaiou. O carro atravessou a rodovia e bateu de frente em uma camionete F100.
Estava sem o cinto de segurança e com a força da batida foi jogado para o banco do caroneiro. O carro ficou destruído, e a direção parou no banco de trás. Ele escapou de ser esmagado. Quando acordou minutos depois, sentiu fortes dores no braço e percebeu o osso exposto.
Disso resultou cinco dias de internação na UTI e 17 no quarto normal do hospital de Lajeado. Seus problemas de locomoção começaram em virtude da bacia quebrada.
Sequelas até então silenciosas se manifestaram no devido tempo. Cerca de dez anos atrás, as cartilagens dos joelhos apresentaram problemas.
Ainda vai até as localidades de Batuvira e Alto Pau Queimado para ajudar os amigos a enrolar fumo. O espírito de coletividade é indispensável neste pedaço de terra. “É uma troca, pois às vezes eu preciso carregar algo mais pesado e também recebo ajuda.”
Como legítimo descendente de italiano, faz o próprio vinho. Um pedaço das terras é tomado por parreiras de uva. Neste ano a safra do fruto perdeu qualidade, diz. Teve muita chuva.
Ainda assim, produziu 300 litros de vinho. “Antes tomava uns quantos copos, hoje não tenho mais tanto apetite. Tomo uma taça e tá bom.”
Quando questionado sobre o que espera para o futuro, ensaia um sorriso e não hesita: “Saúde para levar adiante.” Seu principal objetivo é continuar em sua casa. Recusa-se a morar com os filhos, mesmo que essa seja a vontade deles.
Teme não se adaptar à vida urbana, longe do contato diário com os animais e plantações. Os filhos irão trabalhar e ele ficará sentado, avalia. “Preciso ver a rua. Um dia vou sair daqui, uma hora vou ter que me entregar, mas enquanto posso fico aqui, fazendo o que gosto”, conclui.
Momentos marcantes
“Quando pequeno adorava caçar de bodoque. Não tinha nada de proibido, tinha bastante caça.” As lembranças do agricultor lhe remetem aos campos encobertos por plantações. Hoje os morros foram tomados pela vegetação.
Testemunha do êxodo rural, Zago ficou no campo por ter pouca escolaridade. Porém, criou os três filhos e os educou em colégio particular, que na época se resumia as seminários.
E a vida se encarregou de lhe deixar mais solitário. Há seis anos, depois de uma úlcera mal curada, a mulher Venilde foi submetida a uma cirurgia. O filho a levou às pressas até Santa Catarina para o procedimento.
Essa operação teve êxito parcial e necessitou correção alguns anos depois – o que a deixou muito debilitada. “Sempre ficava mal, não conseguia almoçar, beliscava como um passarinho”, lembra.
Complicações no coração aumentaram a preocupação do marido e dos filhos. Foi levada para consultas com médicos especialistas cada vez mais frequentes. Em dezembro de 2007 o estado de saúde dela piorou.
Em casa, Armindo esperava por notícias. Na madrugada, a chegada de um carro lhe deixou atônito. “Era minha filha e já imaginei alguma coisa. Me arrepiei antes deles entrarem. Depois me contaram o que aconteceu. Aqui tem uma foto dela, mas quase que não posso olhar. Sinto muita falta dela.”
Solidão inevitável
Os idosos da clínica são atualizados sobre o dia, mês e ano de maneira sistemática. Tal medida evita que muitos percam a noção do tempo. Dona Albina Foppa Diomenico, 92, é natural de Guaporé e tem dois filhos.
Um deles mora em São Paulo e o outro, em Mato Grosso do Sul. As visitas esporádicas matam a saudade. Porém, as lembranças da vida só remetem ao árduo trabalho rural, conta D. Albina.
Os pais, vindos da Itália, começaram a vida com o duro sustento tirado da terra. Com voz rouca, lembra que tinha 12 pretendentes na sua juventude. “Mas me casei com um só”, antecipa-se. Com a morte do marido, ficou deprimida.
Hoje tem nos colegas da clínica suas companhias, mesmo que pouco se conversem. Suas principais atividades se resumem ao crochê, bordado e missa que assiste pela TV todas as manhãs. Mas passa por momentos nos quais a solidão é inevitável.
Em outra área da clínica, ficam os idosos mais debilitados. A professora Rosimeri Tavares, 87 anos, alfabetizou inúmeras crianças, ensinando-lhes a pronúncia e a escrita do português. Hoje, entretanto, pouco consegue falar.
Com uma doença degenerativa no sistema nervoso central permanece acamada o tempo todo. A doença desencadeou complicações que a levam a tomar 20 medicações diferentes todos os dias. As dificuldades impuseram uma alimentação feita por sonda.
Ao perceber visita no quarto, abre os olhos e se expressa com voz firme, lúcida, embora o corpo não corresponda. Por isso, quando nota o resvalar da conversa se encaminhando para questões sobre quais escolas ela lecionou, esforça-se e balbucia: “Fernandes Vieira e Madre Bárbara.” Depois, fecha os olhos e volta a dormitar.