Origens e resistência: o primeiro quilombo de Lajeado

Consciência Negra

Origens e resistência: o primeiro quilombo de Lajeado

Escravizado em fazenda do Vale do Taquari, o ancestral africano conhecido como “Vô Teobaldo” deu origem à família que hoje forma a Comunidade Quilombola Unidos do Lajeado. Com a titularização junto à Fundação Palmares, o grupo agora reforça a história da terra no bairro Planalto, por meio de uma pesquisa da CCR

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Atualizado quarta-feira,
23 de Novembro de 2022 às 08:32

Origens e resistência: o primeiro quilombo de Lajeado
Vanderlei é neto de Teobaldo e foi o responsável por organizar os documentos para titularização da comunidade quilombola. Crédito: Júlia Amaral
Lajeado

Em um raio de menos de 10 quilômetros da duplicação da BR-386, existe um território que preserva histórias pouco conhecidas sobre o município. A comunidade quilombola Unidos de Lajeado fica no bairro Planalto e teve suas raízes confirmadas por pesquisas desenvolvidas a pedido da CCR Viasul.

O “Estudo sócio-histórico-antropológico-geográfico e etnoarqueológico na Comunidade Quilombola Unidos de Lajeado” faz parte do processo de licenciamento ambiental da concessionária e foi feito por solicitação da Fundação Palmares. Desenvolvido pela empresa especializada em educação ambiental, Ângulo Social, de Minas Gerais, o trabalho foi apresentado no IFSUL.

Conforme a Ângulo, o estudo está em desenvolvimento desde o primeiro semestre de 2022. O trabalho apresenta informações sociais, históricas, antropológicas e geográficas sobre a Comunidade Quilombola e analisa o seu processo de formação.

 

Território sagrado

Onde hoje ficam os bairros Planalto e Igrejinha, existem ruínas do que um dia pode ter sido fazendas que utilizaram trabalho escravo. Conforme explica uma das pesquisadoras, Karen Pires, não houve escavação, mas foi feito um levantamento histórico e topográfico.

No Planalto, existem taipas que os pesquisadores suspeitam terem servido de divisões de áreas de agricultura ou de pomar das famílias brancas. O local também está associado às atividades produtivas como o extrativismo de pedras utilizadas na construção civil.

“Como não escavamos, então não tem datação. Mas, pelo padrão arquitetônico, pela história regional e pelo plátano que está plantado lá, a gente estima que são uns 200 ou 250 anos nessa estrutura”, conta Karen. Neste caso, seriam pelo menos 40 anos da fundação de Lajeado.

Os pesquisadores destacam que o objeto mais antigo encontrado no local, e que foi possível verificar a data, é do final do século XIX. O próximo passo é encaminhar o estudo para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para catalogar os pontos como sítios arqueológicos.

“Eu me criei no Planalto, então vivo ali andando naquelas pedras. Tenho uma ligação religiosa forte naquele lugar. Para mim, quando veio essa questão de ser quilombola, eu tive que olhar com outros olhos e fiquei assustada”, conta Camila Marques, integrante da comunidade.

Vô Teobaldo

Camila é descendente de Geraldo Teobaldo, nascido em Moçambique e escravizado em Taquari. Ele teve dez filhos, entre eles Rene, pai de Vanderlei Adriano da Silva, responsável por reunir todos os documentos necessários para receber o título de quilombo pela Fundação Palmares.

Para garantir o certificado, a comunidade precisava confirmar o parentesco com um escravizado. Em 2015, Vanderlei bateu de porta em porta e registrou os documentos dos parentes, todos com o sangue de Vô Teobaldo. Um ano depois, a Unidos do Lajeado recebeu o título da Fundação Palmares.

A iniciativa de buscar pela certificação surgiu depois que o Quilombo São Roque, de Arroio do Meio, conquistou o título. “Sou cidadão lajeadense, sempre estive aqui trabalhando e fazendo o que é certo. Agora chegou o tempo de sermos reconhecidos como patrimônio. Nós estamos aprendendo a nos comportar nisso”, conta.

A comunidade tem planos de construir uma sede para organizar encontros e preparações para atividades como as que ocorrem durante o Mês da Consciência Negra. Assim, os quilombolas pretendem manter viva a cultura deixada por Teobaldo.

Comunidade reunida no dia da apresentação do estudo da CCR sobre o quilombo de Lajeado, no IFSul. Crédito: Divulgação

Quilombo contemporâneo e urbano

O pesquisador Fábio Guaraldo reitera a importância a diferença entre um quilombo na época da escravidão e um quilombo contemporâneo. “Hoje em dia a gente reconhece o direito das comunidades quilombolas, tanto pelo legado cultural, quanto pela territorialização. Também associado aos saberes”, diz Guaraldo.

Ele explica que existem diferentes processos de formação de comunidade, mas todas relacionadas a lutas de resistência em contexto racial. Hoje, a comunidade Unidos do Lajeado tem 33 famílias cadastradas, que moram em Arroio do Meio, Estrela, Encantado, Cruzeiro, Encantado, Cruzeiro, Encantando, Carazinho e Gramado.

A quilombola Débora Tatiane da Silva lembra da distinção entre quilombo urbano, em que as famílias tendem a se espalhar, e rural, quando o grupo mora no mesmo local. “Como não somos uma comunidade rural, temos uma necessidade ainda maior de ter um espaço para que todas essas famílias, que moram em regiões diversas, tenham um lugar para se reunir”, pontua.
Impactos reduzidos

Um dos objetivos do trabalho é preservar o patrimônio material e imaterial da história quilombola. Dessa forma, além do estudo histórico, o trabalho também avalia os impactos que a duplicação da BR 386 trará na vida da comunidade e busca diminuí-los.

Algumas das ações englobam a manutenção do acesso ao bairro Planalto durante as obras da duplicação, placas que indiquem a localização do quilombo e do monumento histórico do local, além do reflorestamento da barra da Forqueta.

Um dos aspectos temidos é a especulação imobiliária, já que, a partir da duplicação, o bairro terá acesso facilitado ao centro da cidade. “Se a comunidade perde território, Lajeado também perde a sua história”, reforça Camila.

Saberes repassados

Morador do bairro Santo Antônio, Olívio José da Silva, 74, herdou a habilidade de lidar com chás e plantas do avô Teobaldo. Quando queimou a perna com água quente, sabia com precisão qual seriam as melhores folhas para aplicar no machucado. Esses saberes é uma das heranças apontadas no estudo da CCR.

Olívio só aprendeu a falar português corretamente quando foi para o quartel. Desde pequeno, ele trabalhou em casas de imigrantes alemães. Depois de trabalhar em diversos países na América do Sul, como Uruguai, o quilombola voltou para a região em que nasceu. “Voltei para Lajeado, porque aqui é o meu chão. Só vou sair dessa casa quando eu morrer”, frisa.


O que é a Fundação Palmares

A Fundação Cultural Palmares é a representação no Estado brasileiro, que tem como missão a promoção e preservação da cultura negra e afro-brasileira. Há 24 anos atua em parceria com a sociedade e o movimento negro em defesa dos quilombolas, das religiões de matriz africana e das ações afirmativas com o objetivo de eliminar as desigualdades históricas e as discriminações raciais, étnicas e religiosas.

Quilombos pelo Brasil

  • Somente em 1988 (100 anos após a abolição da escravidão) a Constituição reconheceu, pela primeira vez, a existência e os direitos dos quilombos contemporâneos;
  • A primeira titulação foi em novembro de 1995 quando o Quilombo Boa Vista tornou-se proprietário de seu território;
  • Existem quase 4 mil  comunidades quilombolas espalhadas pelo território brasileiro;
  • Existem comunidades quilombolas em pelo menos 24 estados

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