Na tela, a vida idealizada

Vale do Taquari - YouTubers

Na tela, a vida idealizada

Ídolos dos jovens, youtubers enaltecem o consumo e preocupam os pais. Entre os milhares de canais do youtube, há conteúdos relevantes. De uma ferramenta ainda pouco explorada para o ensino, se popularizam apresentadores ligados aos games e ao entretenimento. Exaltação do consumo, tutoriais de como colar na prova e a contínua desvalorização ao conhecimento preocupam pais, professores e especialistas. Entre o acesso liberado e às restrições, educadores sugerem diálogo e mais controle

Na tela, a vida idealizada
Vale do Taquari

Eles fazem parte do dia a dia dos jovens das mais variadas idades. Por meio da internet, mais precisamente do Youtube, divulgam vídeos altamente produzidos, com linguagem simples em que opinam sobre temas que passam pela política, história, culinária, entretenimento (muitas vezes de gosto duvidoso) e, os mais populares, jogos de videogame e computador.

Os influenciadores digitais estão em toda parte. Basta um computador, tablet ou celular com acesso à internet para chegar até o conteúdo que encanta milhões de crianças e adolescentes. Diante do crescimento viral da importância desses personagens no cotidiano dos jovens, pais, educadores e pesquisadores debatem o papel dos youtubers na educação, na escola e na família.

Advogada e mãe de duas meninas, Caroline Magagnin restringe o acesso ao Youtube diante do conteúdo divulgado por parte desses profissionais da mídia digital.

“As meninas têm iPad, porque é uma realidade. Mas depois de assistir a alguns vídeos, principalmente de dois irmãos, que estão entre os mais populares da internet, fiquei ainda mais atenta”, ressalta. Os irmãos em questão são Felipe e Luccas Neto.

O primeiro é um dos pioneiros no país e tem um canal com mais de 20 milhões de seguidores. Crianças e adolescentes que se encantam com o jeito “divertido” com o qual aborda assuntos relacionados ao entretenimento.

O irmão, com 7,7 milhões de seguidores, é mais visto por crianças de até 8 anos, que se divertem com brincadeiras como tomar banho em uma banheira com 80 quilos de Nutella, guerras de bexigas cheias com chocolate ou tinta e a preparação de brigadeiros gigantes.

Carolina acredita que a maioria das mães não assiste aos vídeos da dupla aos quais os filhos estão expostos. “São completamente voltados para crianças, mas com uma mensagem direta de exaltação ao consumo, dando a entender que a vida tem preço.”

Para Levi Marostega, 14, Alice Weide, 15 e Izabelli de Lima, 14, maior parte dos estudantes se interessa apenas pelos canais de entretenimento

Para Levi Marostega, 14, Alice Weide, 15 e Izabelli de Lima, 14, maior parte dos estudantes se interessa apenas pelos canais de entretenimento

Cita como exemplo um dos vídeos mais populares de Felipe Neto, no qual ele fala sobre como gastou R$ 18 mil durante uma viagem à Disney. “Assisti a esse vídeo e li os comentários, onde muitas crianças se mostram infelizes e frustradas por não ter acesso a esse tipo de luxo.”

Outro exemplo apontado pela advogada são os vídeos com divulgações das bonecas Lol. “São brinquedos que custam uma fortuna, cuja venda é impulsionada por abordagens agressivas e, pior, sem nenhum controle da legislação acerca da publicidade infantil, que é proibida.”

Mãe de uma menina de 10 anos, a artista plástica e publicitária Uliana Pietta Lorenzi é uma das críticas de Felipe Neto. Para ela, o youtuber representa um garoto mimado, despreparado e arrogante. “Não diz coisa com coisa e está ali enganando milhares de crianças e adolescentes.”

Ela e o marido controlam remotamente os conteúdos assistidos pela filha, que ganhou celular este ano e foi a última da classe a ter acesso a um aparelho “Mesmo assim, achamos cedo demais, e combinamos com ela para não levar para a escola, acessar quando estamos perto e desligar às 21h.”

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Em casa, os youtubers só são permitidos se passarem pelo crivo dos pais. “A maioria são crianças ou jovens totalmente despreparados, que apresentam ‘novidades’ aos nossos filhos por incentivo das mães que buscam em seus filhos aquilo que não conseguiram ser”, critica.

Segundo ela, a onda começou com uma youtuber chamada Paula Stephânia, que ensinava a fazer fazer luzinhas de Natal com forminhas de doce. Uliane assistia aos vídeos com a filha e tentava reproduzir. Com o tempo, lembra, passaram a aparecer uma série de outros canais com os mais variados temas.

“São crianças, muitas vezes acompanhadas das mães, fazendo baboseiras e empurrando produtos dos patrocinadores para nossos filhos”, aponta. A publicitária lembra que, ao permitir a exposição de crianças em vídeo desde cedo, os pais acabam abrindo portas para todo tipo de assédio.

Segundo ela, barrar a influência desses profissionais da mídia digital nas crianças e adolescentes é uma tarefa dos pais, e não da escola. Conforme Uliana, se a família der mais atenção às crianças e oferecer programas como idas ao cinema e passeios, elas estarão menos propícias a gastar tempo com modismos como esses.

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Conteúdo ou entretenimento?

Alunos do 9º ano da rede pública, Izabelli de Lima, 14, Alice Weide, 15, e Levi Marostega, 14, concordam sobre a grande influência exercida pelos os youtubers na geração que pertencem. Para eles, apesar de grande parte dos canais serem dedicados a bobagens, existem conteúdos de qualidade capazes de ajudar na compreensão dos ensinamentos na escola.

De acordo com Alice, parte dos conteúdos nas aula tradicionais não chama tanta atenção, e alguns youtubers conseguem apresentar esses temas com uma linguagem adaptada ao universo dos adolescentes. “Às vezes você aprende em meia hora de vídeo com imagens e uma linguagem que a gente entende, o que aprenderíamos em duas horas na sala de aula.”

Para a estudante, se nas salas de aula houvesse mais elementos usados pelos youtubers, como imagens e pequenos vídeos, ficaria mais fácil de prender a atenção dos alunos. Levi Marostega acredita que o youtube já faz parte da educação. Ele assiste principalmente vídeos sobre gestão futebolística e outros que ajudam a melhorar o preparo físico.

“Pretendo cursar Educação Física na faculdade, mas também assisto aos que falam sobre história”, conta. Segundo ele, muitas vezes os conteúdos apresentados em sala de aula são resumidos, e os vídeos são capazes de oferecer mais profundidade aos temas.

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Mesmo quando o conteúdo não é considerado entretenimento, os alunos consideram importante estar atentos para não tomar como verdade as opiniões dos influenciadores digitais. “Alguns alunos preferem acreditar no que viram na internet do que no professor que estudou anos para saber sobre um assunto e estar na sala de aula”, diz Alice.

Apesar dos canais que agregam qualidade às discussões da sala de aula, Alice afirma que a grande maioria dos jovens se interessa mesmo por vídeos de entretenimento. “Todos assistem a youtubers, poucos vão atrás de coisas que realmente são importantes.”

Conforme Izabelli, os canais mais populares no youtube são de pessoas sem limites, que fazem coisas absurdas para ganhar seguidores. Cita como exemplo os influenciadores que cumprem desafios, muitas vezes enviados por fãs.

“Esses dias um youtuber colocou a cara em um formigueiro, correndo risco de morrer. São sempre coisas que parecem bobas, mas que podem ter sérias consequências para a saúde”, ressalta. Segundo ela, muitos colegas acreditam em tudo o que seu youtuber preferido fala e são capazes de discutir com amigos e professores que discordam das opiniões dos influenciadores.

Papel dos educadores

Professora de Geografia na rede pública, Fernanda Kerber acredita que os educadores não têm como fugir da discussão acerca dos influenciadores digitais. Para ela, os professores deveriam se inteirar mais sobre quem são esses youtubers e quais são possíveis de indicar para os alunos.

Mesmo assim, ressalta a importância de ter cuidado com o conteúdo apresentado por esses profissionais da mídia digital. “Mesmo quando falam algumas coisas sobre aula, alguns falam coisas que não são verdadeiras. Além disso, tem muito youtuber que fala para não estudar e dá dicas sobre como colar.”

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Fernanda diz ter conhecido alguns canais de youtube por indicação dos alunos. Em um dos casos, conseguiu trazer para a sala de aula informações extras que ajudaram os estudantes a compreender melhor o funcionamento dos furacões. “Na época, um tornado atingiu a América Central, e os próprios alunos me falaram sobre uma youtuber que estava morando na região mostrava em tempo real o que estava acontecendo”, lembra. Exibido em sala, o vídeo prendeu a atenção dos estudantes.

Ressalta que a maioria dos youtubers oferece apenas informações soltas e não explica os porquês dos fenômenos sobre o qual opinam. Para ela, isso é um dos fatores que contribui para a principal dificuldade apresentada pelos estudantes: a falta de compreensão sobre como os processos ocorrem na sociedade.

Preocupação institucional

Diretor do Colégio Evangélico Alberto Torres (Ceat), Rodrigo Ulrich acredita que existem, no Youtube, canais importantes e outros que não contribuem ou mesmo atrapalham. “Assim como há pessoas que conseguem aproveitar de modo significativo e saudável e outras que contraem problemas para si pelo uso inadequado.”

Para ele, é preciso refletir primeiro no âmbito dos adultos para a partir disso termos uma reação análoga com crianças e jovens. No cotidiano, afirma observar alunos que aproveitam excelentes vídeo-aulas para, na aula presencial com o professor, explorar, perguntar e aprender. “Há inclusive uma metodologia crescendo nesse sentido, a aula invertida.”

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Por outro lado, alega, vê-se alunos fãs de youtubers com caráter de entretenimento precário, medíocre e que não acrescentam em nada. “Às vezes propagam práticas, atitudes e comportamentos que os atrapalham na vida presencial. Além de não divertirem, talvez mantenham-os vidrados num computador, tablet ou celular.”

Para o diretor, se a sociedade atribuir a esses canais e a maneira de aprender e de viver apregoadas por eles, uma importância sem limite ou prioritária, estaremos em risco. “Acredito que precisamos, sempre, conceber o sentido do que vivenciamos, aderimos no momento e a longo prazo e manter a análise constante desta concepção.”

Segundo ele, toda a informação precisa ser problematizada, estudada sobre a sua origem, sua fonte, a sua intencionalidade, a sua vericidade. “Outro ponto importante são as orientações da saúde muito importantes para o uso da tecnologia.”

De acordo com Ulrich, mesmo um canal extremamente bom e positivo, pode se tornar prejudicial, se a pessoa ficar muitas horas assistindo. Quando mais jovem for a criança, alerta, maior a possibilidade de problemas.

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Entrevista

“ Se houvesse uma educação mais atraente e mais digital, tudo isso seria menos problemático.”

Coordenadora da licenciatura em Computação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Márcia Kniphoff da Cruz é mestre em Educação e doutora em Informática na Educação.

O que os youtubers representam para as gerações mais novas e de que forma influenciam o ensino?

Márcia Kniphoff da Cruz – São os ídolos atuais. Trabalho com informática na educação faz 30 anos e vivo isso em casa porque tenho filhos adolescentes. Meu último menino segue fielmente dois canais do Youtube e tem um posicionamento político muito forte em função disso. Os livros didáticos da história do Brasil, por exemplo, têm lacunas, e alguns youtubers traçam um paralelo e trazem outras informações que os professores da área de história poderiam abordar com mais propriedade. A palavra-chave é o pensamento crítico.

Por que esta geração é mais influenciável por esse tipo de estímulo?

Márcia – Meu filho mais velho, de 22 anos, ainda teve uma infância na rua, mas minha menina de 18 e meu caçula de 16 não iam para a rua sozinhos, porque se tornou perigoso. Essa clausura faz com que eles procurem a internet. Na adolescência, tudo é novidade, e esse processo de assimilação da aprendizagem fica confuso. Eles não sabem discernir ainda o certo do errado, pois estão em formação do caráter, e precisam do posicionamento do adulto, que nem sempre é ouvido. Hoje, a válvula de escape é a internet. Tempos atrás era a TV, andar de bicicleta. Mas esse adolescente precisa da presença permanente do pai, da mãe e dos professores para deixar de assistir ou ter um pensamento crítico em relação aos youtubers.

Pais acusam os youtubers de passar uma imagem distorcida da realidade. Por que isso ocorre?

Márcia – Nessa fase, a idolatria é muito forte, e eles só veem os youtubers naquele momento bonito do vídeo. O único recorte que eles têm são dessas pessoas superpositivas, descoladas, críticos em relação ao que eles está expondo. É a pessoa perfeita na frente da câmera, e os adolescentes ou as crianças não conseguem perceber que, quando eles não estão na web, têm que tocar uma vida normal, como todas as outras pessoas. Isso só se alcança pela conversa e pelo diálogo. Mas é preciso se posicionar e muitos não aceitam, pois estão na fase em que pai, mãe e professor não têm voz para eles.

Como esse cenário influencia na educação?

Márcia – Alguns assuntos são formais e a escola serve à formalização de conhecimentos que são básicos. É muito difícil que crianças e adolescentes entendam a importância de aprender uma coisa se não tem aplicação imediata. O youtuber faz coisas rápidas, animadas, divertidas, às vezes inteligente, às vezes não. E sem o pensamento crítico os jovens não conseguem entender que ali está a perspectiva de um ator, que fora dali é uma pessoa que tem que comer, pagar conta e trabalhar para viver. Hoje, alguns vivem muito bem porque ganham muito dinheiro com isso, mas a vida não é o que aparece nas câmeras. No Brasil as coisas estão muito soltas e é preciso resgatar o respeito ao professor. Mas os meios digitais são irreversíveis e não vão regredir. Isso exigirá muito paciência dos pais e dos professores. Se houvesse uma educação mais atraente e mais digital, tudo isso seria menos problemático.

Thiago Maurique: thiagomaurique@jornalahora.inf.br

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