Dois dias depois do incêndio criminoso causado pelo pai de um paciente de 4 anos, um outro homem ameaçou atear fogo no Hospital Bruno Born (HBB) enquanto aguardava atendimento.
O clima de insegurança perdura na principal instituição de saúde do Vale do Taquari, referência no estado. Nos bastidores, o fechamento do acesso geral ao público do Setor de Emergência já é dado como certo.
Quem estava trabalhando na hora do atentado de domingo passado torce por essa decisão. Afinal, as ameaças se potencializaram após o incêndio. A médica plantonista responsável pelo setor de urgência e emergência pública naquele dia prefere não se identificar. Demonstra receio em relação ao fato, considerado o mais “inusitado” dentro da ainda breve carreira profissional, iniciada em 2011.
Ela também atua na UPA e demonstra preocupação com alguns comentários acerca do atentado contra o HBB. Muitos internautas defenderam a atitude do pai. “Nessa comoção popular, me parece, há uma inversão de valores. As pessoas não sabem o que estão falando. Tivesse cometido o ato dez minutos antes, poderíamos ter perdido um dos pacientes que estava em meio a procedimento clínico e não estava estabilizado.”
A médica relembra com detalhes sobre o quase fatídico domingo. O plantão dela iniciou às 7h30min. Até as 10h, já havia atendido sete pessoas. “Muitos pacientes chegaram juntos. Eram múltiplos atendimentos de risco. Um dia atípico. Tivemos só um intervalo de 15 minutos de almoço, lá por volta das 17h. Eu consegui comer só meio cachorro-quente. Tive que deixar para atender uma urgência.”
A gravidade dos pacientes era alta. “O tempo empregado para uma dor de garganta é de 10 minutos. Mas os atendimentos estavam durando cerca de uma hora. Um desses pacientes demandou quase uma hora e 30 minutos para todos os exames.” Entre as complexas consultas, precisava contornar as ameaças por parte daquele pai, cujo filho não apresentava – sequer – quadro febril.
“Avisei a recepcionista: se você está sendo ameaçada, liga para a Brigada Militar (BM). Ela ligou, cerca de uma hora antes do fato. Mas disseram que não teriam como nos atender naquele momento.”
Pouco antes das 17h50min, ela finalizou um dos atendimentos. “Eu levantei para atender as duas crianças que aguardavam, mas um senhor entrou vomitando sangue pela porta de emergência. Profundamente. Com hepatite C, complicada por cirrose. Bem grave. Fizemos o manejo, estancamos o võmito, diminuímos a dor.” Minutos após todo o procedimento, a recepcionista entrou, desesperada. Era 18h47min.
“Ela veio correndo dizendo que havia um incêndio. Graças a Deus um enfermeiro nosso buscou extintor para apagar o fogo. Foi um herói. Estávamos com lotação esgotada. Não tinha como colocar mais pessoas. E todos foram rapidamente transferidos para outras alas.” Naqueles poucos minutos, uma fumaça preta e muita fuligem tomaram conta do Setor de Emergência. “Todos correram riscos”, resume ela.
“Escutei uma explosão”
O enfermeiro que apagou o incêndio também prefere não se identificar. Ele também lembra com detalhes do momento em que foram avisados sobre o atentado. “Eu havia recém transportado um paciente para outro andar do hospital. Quando sentei na minha mesa, a recepcionista entrou correndo dizendo que havia um sujeito armado. Fiquei estagnado. E logo depois ouvi uma explosão.”
Ele, que também mal havia almoçado no dia, correu em direção à sala de recepção do setor. Ao chegar lá, se deparou com uma intensa fumaça preta. Voltou para ruma área não atingida para respirar e pegar um extintor de incêndio. “Fui até o local outra vez, e já tive que me abaixar para escapar da fumaça, que já invadia o local onde ficam os pacientes. Em poucos segundos eu consegui controlar o fogo”, relembra.
A porta da Sala Crítica – onde ficam internados aqueles em situação mais grave naquela ala do HBB – foi fechada para evitar a fumaça enquanto os demais pacientes eram transferidos para UTI e salas do Pronto Atendimento. Minutos depois, as pessoas que estavam em estado grave no Setor de Emergência também foram remanejadas. “E cada transporte desses requer extremo cuidado. Não pode ser realizado apenas por um profissional”, relembra ele.
Toda a evacuação, calcula o enfermeiro, durou menos de 10 minutos. “Tudo em meio a muita fumaça.” A médica, por fim, resume o sentimento de toda a equipe presente naquele domingo. “Sinto muito que isso tenha acontecido. Mas não me sinto nem um pouco culpada. Não tinha qualquer motivo para negligenciarmos um paciente de risco para atender um de menor gravidade.”
Mudanças previstas
A coordenadora do Setor de Emergência, Rosa Lemos, não confirma o fechamento do acesso geral ao público. Mas demonstra expectativa por tal mudança. “Precisamos encerrar com o acesso geral ao público, e receber apenas emergências por referência, sejam de médicos, via UPA ou Samu. Nossos atendimentos não são medidos por números. Mas, sim, pelo tempo que os pacientes ficam na área crítica.”
Segundo ela, além de causar sobrecarga nos funcionários do setor, o fato de o Setor de Emergência ainda atender casos de menor complexidade pode acarretar menos qualidade no atendimento de casos mais graves. “É muito complicado quando, além de ficarmos preocupados com a situação grave dos pacientes, ainda precisarmos amenizar situações de conflito como essa verificada no domingo. São demandas que, em outras cidades, são totalmente absorvidas pela UPA.”
Caso confirme a mudança, a classificação de risco – hoje com quatro cores definindo o grau de gravidade do paciente – deve ganhar uma nova cor. “Seria a cor Laranja, de ‘Muita Urgência’”, afirma a coordenadora do setor que, só nos três primeiros meses do ano, atendeu mais de 2,6 mil pacientes de diversas regiões do estado, por ser o hospital referência na 16ª Coordenadoria Regional de Saúde.
Triagem vai mudar na UPA
A mudança no acesso ao público do Setor de Emergência será apenas uma das alterações previstas para os próximos meses na área da saúde pública em Lajeado. Em maio, a UPA também vai alterar o mecanismo de “triagem” realizado com cada paciente. Lá, eles chamam esse procedimento de “classificação de risco”. Hoje ainda dividida em quatro cores.
De acordo com a coordenadora da UPA, a farmacêutica Úrsula Jacobs, também será incorporada a cor laranja, que representa “Muita Urgência”. Lá, assim como no HBB, o excesso de casos de baixa complexidade gera atritos entre equipe, pacientes e parentes. Só nessa quinta-feira, por exemplo, entre os 212 atendimentos, só quatro foram efetivamente de emergência.
Úrsula, assim como os profissionais do HBB, demonstra preocupação com as agressões verbais diárias contra médicos e enfermeiros, principalmente em função do tempo de espera. Faz poucos meses, um paciente quebrou algumas vidraças da unidade após se queixar do atendimento. “A população precisa entender que esses casos de baixa complexidade devem ser tratados em postos de saúde. Aqui é um local para urgências.”
A constante entrada de pacientes preocupa. Na segunda-feira passada, por exemplo, houve uma briga de dois motoristas que chegavam ao local. Um deles estava com uma foice. O outro com um facão. “Muitos chegam na pressa e acabam errando até a entrada correta para veículos.” Além desses riscos, a unidade ainda não conta com sistema de videomonitoramento, o que traz mais insegurança aos funcionários.
Secretário esclarece
Responsável pela Saúde (Sesa), Tovar Muskkopf acompanha as polêmicas envolvendo atendimentos de baixa complexidade no HBB e na UPA. Ele ressalta a importância dos postos de saúde, que só nessa quinta-feira registraram quase 900 consultas. Segundo ele, o uso recorrente do HBB ainda é uma questão cultural.
Diante disso, informa que as Unidades de Saúde são para atendimentos eletivo, como consultas de rotina, acompanhamento de doenças crônicas (hipertensão arterial e diabetes), redução de danos (controle de peso, cessar o tabagismo), exames de prevenção (pré-câncer de cólo de útero, teste do pezinho, testes rápidos para hepatites, HIV, sífilis e gravidez), ações de imunização (vacinas), etc.
Sobre a UPA, reforça que serve para situações que não podem esperar pelo agendamento da consulta. Cita como exemplos dor, febre, suspeita de fratura, descompensação de uma doença crônica, crise asmática, risco de vida, acidentes, cortes, tentativas de suicídio, dor no peito, suspeita de infarto e AVC, queimados, etc. “A UPA funciona 24 horas por dia, todos os dias. E os pacientes não são atendidos por ordem de chegada, mas por classificação de risco.”
Já sobre o HBB, Muskkopf afirma que o hospital precisa ser referência para pacientes com maior gravidade e com risco de morte, que necessitam de cirurgias, exames complementares de ecografia ou tomografia, avaliação de especialistas, internação hospitalar, entre outros. “O ideal é que os pacientes sejam encaminhados ao HBB após passarem por atendimento pelo Samu ou pela UPA.”
Internações no Setor de Emergência do HBB no domingo, 1º de abril
Já internado – Paciente entrou no sábado à noite, com suspeita de leptospirose. Foi liberado às 16h10min de domingo. Também havia uma outra paciente já internada.
8h35min – Paciente chegou da UPA com icterícia neonatal, mais conhecida por “amarelão”. Foi internada em outra ala às 16h20min.
9h30min – Entrada de paciente oncológico com sintomas de obstrução intestinal. Teve alta às 19h30min, após ser transferido de ala em função do incêndio.
10h – Paciente chega da UPA com quadro de suspeita de AVC. Após exames, diagnosticada hipoglicemia, quando a taxa de glicose no sangue diminui para valores inferiores ao normal.
10h – Internação de paciente com pneumonia aspirativa na sala crítica da emergência. Foi para a UTI do HBB às 15h.
11h44min – Paciente chega com sintomas fortes de apendicite. Foi levado para outro setor às 18h23min.
12h – Internado na sala crítica um paciente também com apendicite. Foi para outro setor às 16h.
12h55min – Paciente internado com pneumonia. Foi transferido de setor às 16h30min.
13h12min – Equipe recebe paciente com fratura. O atendimento foi considerado de urgência.
14h – Internação na sala crítica do Setor de Emergência de homem com septicemia (infecção generalizada). Foi transferido de setor após o incêndio.
14h15min – Paciente é internado com sutura extensa na coxa e no joelho, após trauma causado por uma motosserra. Ele ficou na sala crítica e foi transferido após o sinistro.
14h44min – Equipe recebe paciente oncológico com sintomas de fraqueza e dores abdominais. Recebeu alta às 19h2min.
15h – Paciente com bradicardia é internado na sala crítica. O sintoma significa uma diminuição na frequência cardíaca. Estava próxima de 25. Foi para a UTI às 18h40min.
15h47min – Paciente chega com quadro de taquicardia.
16h6min – Paciente oncológico com dispneia – dificuldade de respirar – chega ao setor. Teve alta às 19h30min.
16h21min – Paciente cardiopata com fortes dores no peito é atendido pelo equipe. Teve alta às 19h30min.
17h45min – Paciente entra no setor vomitando sangue. O quadro era de hemorragia digestiva. Após, foi levado para a UTI, mas morreu ainda no domingo.
18h – Equipe recebe homem com hipercalemia, encaminhado para a UTI após o incêndio.
18h12min – Paciente é internado com crise convulsiva. Foi liberado após o incêndio.
18h40min – Chega o último paciente antes do atentado. Ele é oncológico e foi internado.
18h47min – Homem incendeia a recepção do Setor de Emergência