Depois de meio século na roça, Renato Löfke, 55, deixou 25 hectares de terra em Picada Arroio do Meio, em 2013, para recomeçar a vida na cidade. Entre os motivos da decisão, estiveram as dificuldades do trabalho no campo, a ausência de políticas públicas e a redução do preço do litro do leite, na crise anterior que afetou o setor em 2011.
Outro fator determinante para guardar a enxada foi o acidente que incapacitou irmão dele, quando juntos estavam no auge da produção. Ao subir em uma escada para construir um galpão, o principal companheiro de trabalho despencou de uma altura de três metros e fraturou a bacia. Sozinho no interior, Löfke quase entrou em depressão. Após dois anos na lida, passou a sentir muitas dores na coluna e decidiu migrar à cidade.
O ex-produtor vive hoje com a família em uma casa no bairro São Caetano, sustentando-se com o que ganhou na venda da propriedade, equipamentos e com os benefícios do INSS por invalidez. Diante das limitações físicas causadas pelo trabalho no campo, tornaram-se convenientes as vantagens da área urbana, como a facilidade no acesso aos serviços básicos. “É muito bom. Agora eu me sinto melhor aqui”, declara.
Não se arrepende de sair do meio rural, mas sente falta da lida presente na vida dele desde os 12 anos. Para acalentar a saudade, dedica algumas horas do dia à horta nos fundos da residência e às plantações de milho e aipim no terreno de um vizinho, que o delegou a tarefa de manter limpo.
Löfke está entre os quase 5 mil agricultores que deixaram a produção como principal fonte de renda nos últimos 11 anos no Vale do Taquari. Conforme dados preliminares do Censo Agro 2017, houve redução de cerca 17,5% na quantidade de estabelecimentos agropecuários em relação ao levantamento anterior, realizado em 2006. Os números referem-se aos 38 municípios da região.
Perfil do produtor
O chefe da agência do IBGE de Lajeado, Gustavo Reginatto, ressalta que o Censo ainda está em andamento, e os números podem passar por alterações. A pesquisa está em etapa de revisão. Depois, serão elaborados relatórios específicos para cada município, e os dados “mais macros” serão apresentados a comissões municipais.
“Passamos agora por uma fase de ajuste fino, com a apuração dos dados coletados e a crítica deles. Além disso, a coleta ainda permanece, de forma pontual, nos poucos estabelecimentos que, por ventura, possam não ter sido visitados”, diz Reginatto.
A previsão de divulgação oficial das informações é julho deste ano. O levantamento promete revelar o atual perfil do produtor rural. A pesquisa reunirá informações sobre sexo, idade, cor, níveis de alfabetização e escolaridade, formas de obtenção e utilização das terras, efetivos da pecuária, produção animal e vegetal, as práticas agrícolas utilizadas no estabelecimento, entre outras.
Em nível de Estado, foram recenseados 361.078 estabelecimentos agropecuários até o momento. A quantidade é 18,4% menor do que em 2006, quando foram contadas 442.760 propriedades.
“Em determinados locais, pode se observar que alguns produtores não tiveram sucessão e, portanto, existem áreas que foram produtivas no Censo 2006 e hoje não são mais”, constata Reginatto. Segundo ele, outras propriedades foram alugadas por produtores mais estruturados, por meio de arrendamento ou parceria.
Motivos para o êxodo
Entre as razões para o esvaziamento do campo, a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Arroio do Meio elenca fatores que levam o camponês a migrar à cidade. O município está entre os que tiveram maior diminuição no número de estabelecimentos rurais desde 2006: cerca de 29,2%.
Envelhecimento da população rural, ausência de sucessores nas propriedades, dificuldades para acompanhar os avanços tecnológicos, instabilidade em segmentos do setor primário (como a cadeia do leite), cortes em investimentos e redução de incentivos governamentais são alguns dos motivos. Para os agricultores familiares, está cada vez mais difícil manter propriedades lucrativas e competitivas diante da expansão dos grandes empreendimentos rurais.
“Uma família não se sustenta mais com a sobra da produção. Estamos enfraquecendo em todos os sentidos. Então, a propriedade vai parar nas mãos dos grandes produtores”, afirma o presidente do STR, Astor Klaus.
Para ser lucrativa, a produção de alimentos precisa ser feita em larga escala, o que poucas famílias conseguem manter. “Quando o agricultor não consegue mais competir, ele para e aluga para o vizinho a propriedade, ou para um produtor maior”, comenta Klaus.
Conforme o vice-presidente Paulo Grassi, a atividade rural não consegue remunerar a mão de obra, no fim do mês, como o meio urbano. “O interior não produz uma renda parecida com a renda que ele vai ter na área urbana. A medida que ele vai descobrindo isso, ele vai deixando o interior e procurando se estabelecer na cidade, complementa.
Embora o agricultor, de forma geral, acumule mais patrimônio ao longo da vida em relação ao trabalhador urbano, isso não fica disponível, mês a mês, para investimentos em consumo, lazer, bens próprios, entre outros. “Em três ou quatro anos, ele pode ter 20 animais que valem R$ 50 mil. Mas ele precisa daquilo para continuar produzindo. Ele não consegue transformar em dinheiro no final do mês. Se ele faz isso, a atividade dele para”, ressalta Grassi.
O secretário do STR, André Beuren, destaca a situação dos mais idosos que optam por migrar à cidade para ficarem próximos dos filhos, que não tiveram interesse em permanecer no campo. Com as dificuldades físicas inerentes ao avanço da idade, a rotina no meio urbano se torna mais fácil, como ir ao banco, ao mercado, à farmácia.
Beuren ainda ressalta o enfraquecimento do modelo de escola rural, voltada à formação de jovens agricultores. Na proposta pedagógica das instituições convencionais, os estudantes são estimulados a preferir o meio urbano e sonhar com profissões típicas da cidade. “A criança, desde cedo, já é urbanizada”, considera.
Na contramão
Entre os 38 municípios do Vale do Taquari, apenas Muçum e Westfália apresentaram índices superiores de propriedades rurais em comparação com 2006. Na primeira cidade, o montante era de 277 faz 11 anos e, neste último censo, passou para 354. Um aumento de 27,8%. Já na cidade de origem alemã, o número passou de 382 para 464, um acréscimo de 21,4%.
Secretário de Agricultura de Muçum, Vilson Pin demonstra surpresa com a divulgação nos números, e busca encontrar explicações para a discrepância da cidade com o restante do Vale. “A gente percebe muitas pessoas voltando para o interior. Viveram na colônia na infância e passaram anos na cidade. Acabam cansando do ritmo e voltam para as suas próprias origens.”
[bloco 1]
Há muitos investidores de olho nas terras mais próximas ao Rio Taquari, diz, principalmente entre as localidades de Fátima e Linha Alegre. “Nessas várzeas, as terras são muito boas para o plantio de frutas.”
Entre os investimentos, Pin cita a instalação de uma empresa de produção da fruta pitaya. E também empreendedores na área da suinocultura. “São investidores que já viveram na região e estão voltando para ficar, e também muita gente de fora.”
Fruta exótica é aposta dos “novos colonos”
Rudimar Bertinato e Adelir Gregio são considerados “novos colonos” entre antigos produtores de Linha Alegre, uma pequena comunidade instalada entre os vales que margeiam o Taquari, quase na divisa de Muçum com Santa Tereza. Faz poucos mais de quatro anos, ambos moravam na agitada cidade de Bento Gonçalves, com mais de 115 mil habitantes.
Bertinato, 52, é natural de Roca Sales, na localidade de Campinhos, e chegou a trabalhar alguns anos na roça quando criança. Mas logo aos 14 anos, em 1980, se mudou com a família para a serra gaúcha onde trabalhou em empresas moveleiras, na gerência de supermercados, e de vendas em outras fábricas, entre outros serviços distintos. Todos muito distantes da área rural. O agora sócio era proprietário de uma loja de móveis e foi lá que se conheceram, faz alguns anos.
Cansado da vida na cidade, Bertinato comprou uma área de terra às margens do Taquari, onde possui ainda uma pequena marina para acesso de lanchas até o rio. Inicialmente, era só para lazer. “Acho que o principal de tudo é a qualidade de vida do campo.” Casado, tem dois filhos. Um mora em Londres, onde trabalha em uma cozinha, e o outro filho está pensando em também investir na nova aventura do pai: a produção de pitaya, uma fruta de aparência exótica e de sabor adocicado.
A ideia veio em conjunto com o sócio, Gregio. Faz pouco mais de três anos, o amigo o visitou na chácara e tocou no assunto. Foram para Turvo, em Santa Catarina, conhecer a cultura da produção. “Nos encantamos”. Em janeiro de 2016, plantaram um hectare com dois mil pés das variedades branca, vermelha, roxa e amarela e, um ano depois, a primeira safra rendeu mil quilos da fruta, vendida a R$ 10 o quilo. Agora, querem colher mais de três toneladas. “Valeu a pena voltar para a área rural”, resume Adelir.
“Me aposentei e voltei à roça”
Caminhando entre a poeira gerada pelo tráfego de caminhões e tratores, na estrada geral que liga linha Fátima e Linha Alegre, no interior de Muçum, Ozilia Benachio, de 66 anos, não demonstra cansaço diante do calor que já superava os 35 graus na tarde desta sexta-feira. Ela estava indo para a casa de um cunhado, onde ajudaria na lida do campo. É assim que ela vive a aposentadoria.
Ozilia trabalhou muitos anos como funcionária pública. Não sabe precisar o tempo exato de carreira. Lembra, porém, que antes de iniciar em cargos públicos atuou por muitos anos na roça. Foi lá, também, que ela criou a maioria dos filhos, antes de encarar o corre-corre da cidade.
Aposentada, resolveu retornar para a mesma colônia onde, segundo ela, viveu os melhores momentos da infância, apesar do trabalho árduo em determinadas épocas do ano. Hoje, mora na localidade conhecida por Linha Barra das Contas. “Me aposentei e logo voltei correndo para a roça. Na verdade nunca deixei de realizar alguns pequenos serviços, mas agora é tempo integral”, garante.
Na propriedade pequena, com pouco mais de 3,8 hectares, o plantio é principalmente de milho. Também cria suínos e gado, mas tudo para consumo próprio, garante. “No ano passado o pessoal do Censo passou lá em casa. Nos classificaram como propriedade rural, mesmo que a gente não tenha o costume de vender nada. Lá, só mora eu e meu marido. Os filhos não quiseram ficar no interior.”
Entrevista
“É um processo de reconfiguração das propriedades”
Fernanda Sindelar é graduada em Ciências Econômicas, mestre em Economia pela PUCRS e doutora em Ambiente e Desenvolvimento pela Univates. Tem experiência na área de Economia, atuando nos seguintes temas: Vale do Taquari, cadeias produtivas, agricultura orgânica e sustentabilidade de sistemas.
Dados preliminares apontam à redução de propriedades rurais no Vale do Taquari. Que análise pode ser feita sobre isso?
As propriedades que permanecem na atividade estão tornando-se mais especializadas, enquanto que pequenas propriedades estão desaparecendo, diante das dificuldades enfrentadas pelo setor. Atualmente, o que se observa na região e em outras é um processo de reconfiguração das propriedades. Muitas continuam existindo, mas deixaram de ter a função comercial. Algumas famílias continuam residindo no meio rural ou saíram da zona urbana para residirem na zona rural. No entanto, mantêm sua fonte de renda no meio urbano e utilizam a propriedade rural apenas para a subsistência e espaço de lazer.
Quais são as principais causas para este fenômeno?
Podem ser diversas as causas para esse fenômeno, sendo reflexos das dificuldades enfrentadas pelos produtores rurais na última década. Entre as quais, citam-se: a falta de mão de obra para atuar nas propriedades, a não existência de sucessão familiar, as incertezas em torno da produção, que é suscetível a intempéries naturais, exigências cada vez maiores por parte das agroindústrias que absorvem a produção agrícola para a realização de investimentos elevados em infraestrutura e tecnologia, elevado custo para o desenvolvimento da produção e reduzida taxa de retorno, entre outros.
Qual é o desafio para manter a atividade rural em meio ao desenvolvimento urbano?
O desenvolvimento urbano da região está alicerçado nas atividades desenvolvidas no meio rural, uma vez que as agroindústrias que empregam um número significativo de trabalhadores processam a matéria prima proveniente do campo. Assim, o desafio é garantir a atratividade para a permanência da população no meio rural, especialmente jovem, e estimular que estes continuem desenvolvendo as atividades agrícolas. Para isso, torna-se fundamental o desenvolvimento de políticas públicas que incentivem o desenvolvimento das atividades agrícolas, garantam a renda agrícola e oportunizem a inserção de novas tecnologias que facilitem o manejo e o desenvolvimento das atividades.
Entre os motivos para o êxodo rural, está a falta de sucessão nas propriedades. Como o setor pode superar essa dificuldade?
É necessário que os pais incentivem os filhos a permanecer nas atividades e permitam que, desde cedo, os filhos participem da gestão das propriedades. O que se observa, na prática, são conflitos de gerações. Os mais velhos têm dificuldades em realizar mudanças nos processos produtivos, porque sempre fizeram as atividades de uma maneira e gerava resultados, mas os jovens possuem visões alternativas, e quando não podem implementá-las, sentem-se frustrados e desistem.
Com base nesses dados, o que se pode traçar para o futuro do meio rural em nossa região?
Acredito que, infelizmente, nos próximos anos o número de propriedades rurais tende a diminuir ainda mais em virtude das dificuldades enfrentadas e a falta de incremento tecnológico. As propriedades rurais hoje precisam ser administradas como empresas rurais para “sobreviverem” diante das exigências dos mercados, e nem todas elas estão preparadas ou dispostas a fazerem inovações na gestão e nos processos produtivos. Por isso, aquelas que não se adequarem às novas exigências do mercado tendem a ser excluídas.
Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br | Alexandre Miorim: alexandre@jornalahora.inf.br