Igreja punida: Justiça condena Universal a pagar R$ 20 mil por coagir casal

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Igreja punida: Justiça condena Universal a pagar R$ 20 mil por coagir casal

Uma mulher de Lajeado recorreu à Igreja Universal do Reino de Deus em um momento de dificuldade. Vendeu o carro e doou o dinheiro, deu móveis e eletrônicos na esperança de que as palavras do pastor se tornassem realidade. Tempo depois, percebeu que tudo era uma ilusão. Junto com o marido, levou o caso à Justiça. Em segunda instância, a igreja foi condenada a pagar R$ 20 mil à família

Igreja punida: Justiça condena Universal a pagar R$ 20 mil por coagir casal
Vale do Taquari

O ano era 2007. Uma moradora do bairro Conservas, na época proprietária de uma revenda de aparelhos de ar-condicionado, passava por um momento financeiro complicado. O marido trabalhava junto no negócio. Ela começou a sentir alguns sintomas da depressão e, para pedir ajuda e tentar reerguer a família, que também já tinha um filho de 4 anos, procurou auxílio junto ao templo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd).

O processo iniciou cerca de quatro meses após a vítima começar a participação em alguns cultos, na sede da entidade religiosa, instalada no centro. “Na verdade eu não estava lá há muito tempo. Alguns meses. E sempre tinha que pagar o dízimo. Cobravam 10% de tudo que vendêssemos na nossa loja. Do nosso lucro”, conta a vítima.

No entanto, segundo ela, os pedidos por dinheiro aumentaram a partir do momento em que ela participou de uma nova etapa dos cultos, chamada “Fogueira Santa”. Nessa, explica, a “fé precisa ser maior”. “Eles pedem para darmos um valor maior para Deus, para assim conseguirmos resolver problemas maiores. Na época eu tinha muitos problemas financeiros. E para quem não gosta de ficar devendo isso é muito angustiante”, relembra.

Mesmo com dívidas, ela pagava cerca de R$ 100 de dízimo a cada culto. Por vezes, mais. O marido já reclamava. “Eu falava para ela: para com isso. Isso está errado. Não é assim que funciona”. A partir desse momento, ela parou de contar a ele sobre tais doações, e seguiu indo sozinha aos cultos no centro de Lajeado.

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A “Fogueira Santa”

A família estava construindo a própria casa. Até aquele momento, viviam na residência do sogro dela. O imóvel próprio estava planejado para o mesmo terreno. A sogra lhe deu de presente uma cozinha nova. E a vontade de concretizar o sonho de viver sob o próprio teto era constantemente abalada pelas dívidas do casal.

“Nessa ‘Fogueira Santa’, fazem você subir em um altar e fazer promessas. Gritam: ‘vai na fé, vai na fé, mas sem migalhas para Deus”. Ela recorda, também, do som que tocava nesse momento, e das palavras dos pastores que atuavam naquela época no templo lajeadense. “Aquela música vai entrando na tua cabeça, como em uma academia, quando a música se mistura com o exercício, e as frases dos pastores vão te confortando. É uma lavagem cerebral.”

Ela sucumbiu. Prometeu joias, a cozinha recém-entregue pela sogra, dinheiro, impressora, aparelho de fax, de ar-condicionado split. Por fim, vendeu o carro da família. Um Palio Fire. “Eu pensei em dar o máximo que eu poderia. Para receber o máximo. E na saída do templo me disseram que, se eu não cumprisse a promessa, estaria amaldiçoada. Deus amaldiçoaria minha família. Eles também contaram histórias de fiéis que não cumpriram, não pagaram, e foram punidos”.

Ainda durante o culto de vulto maior, ela relembra alguns depoimentos de outros fiéis, garantindo o sucesso da “Fogueira Santa”. Diziam, segundo ela, que as doações pomposas trouxeram o sucesso. Ou encerraram com períodos de angústia. “Devem ser pessoas que trabalham para eles”, suspeita a vítima. Por fim, ainda fizeram um alerta: quem tentasse impedir tais doações estaria ao lado do “mal”.

Direção da Igreja Universal do Reino de Deus se defende. Por meio de nota, afirma que o dízimo e todas as doações seguem orientações bíblicas e legais

Direção da Igreja Universal do Reino de Deus se defende. Por meio de nota, afirma que o dízimo e todas as doações seguem orientações bíblicas e legais

Marido percebe os fatos

O companheiro dela viajava bastante e não percebeu, de antemão, a falta dos objetos entregues pela esposa. A venda do carro havia sido pré-combinada entre o casal. No entanto, o destino do dinheiro seria a compra de um outro veículo, de preço menor. Ele não sabia, no entanto, que ela queria concretizar o negócio para repassar os valores para a igreja e, assim, cumprir com a promessa feita durante a Fogueira Santa.

“Consegui um bom negócio para comprar um carro novo e então pedi a ela o dinheiro da venda. Foi então que ela me contou tudo. Na hora, me deu um choque. Quebrei alguns tijolos da casa, de tão nervoso. E ela estava muito diferente, com o semblante diferente. Me olhava como se eu fosse a maldade, o capeta. Que desviava ela do bem. E ela sempre foi uma pessoa muito lúcida”, relembra. A esposa corrobora. “Eu estava ‘fora’. E era esse o sentimento: que ele era o mal em pessoa.”

Surpreso com a reação, ele foi até a igreja tentar reaver os objetos e valores doados. Não conseguiu. Voltou no outro dia. A vítima ainda demonstrava temor pelo marido, mas foi junto. “Ligamos para lá para tentar reaver os bens, mas não queriam devolver. Fui até lá e acabei entrando na igreja e consegui pegar só a cozinha, que estava perto do altar, embalada.”

Horas depois, o marido chamou a mãe da vítima e todos foram para a Delegacia de Polícia. Lá, com as informações repassadas por inspetores e familiares, ela compreendeu a reação de todos. “Parece que lá ela acordou. Viu que não era só eu que estava contra ela. Percebeu o erro”, resume ele.

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11 anos de processo

Naquele mesmo ano, o casal processou a Iurd. Quem defendeu eles foi o advogado e escritor, Marco Mejìa. “Abre-se um precedente para todas as pessoas que foram extorquidas pelo dízimo emocionalmente. O julgamento é sobre a extorsão. ‘Se tu não dá o dízimo, tu vai para o inferno’, diziam eles. Eles cobravam além do limite. E o certo é as igrejas pedirem isso sem pressão.”

Houve vitória em primeira instância, em Lajeado, e o caso foi para o Tribunal de Justiça do RS. Inicialmente, o TJ condenou a igreja a pagar a indenização de R$ 20 mil por danos morais. A Igreja Universal recorreu então ao STJ que, nesta semana, manteve a sentença por unanimidade.

Em sua defesa, a Iurd alegou que não houve comprovação dessa coação moral irresistível. O casal pediu a restituição de aparelhos celulares, impressora, aparelho de fax, condicionador de ar split, e também os R$ 20 mil por danos morais. Na decisão do STJ, consta que a condenação ocorre “face a coação moral irresistível exercida por discurso religioso.”

Sobre os bens materiais, o TJ/RS aduziu que “os danos materiais restaram inequivocamente demonstrados pela prova oral coligada, devendo o quantum ser apurado em sede da liquidação de sentença por arbitramento”. A decisão do STJ ressalta que as doações às instituições religiosas são um essenciais à “liberdade de crença”. Entretanto, os relatos comprovados mostram que as doações do casal foram feitas sob “a ameaça de sofrimento e condenação espiritual”

Igreja se defende

A reportagem tentou contato telefônico com a assessoria de imprensa da Iurd, em São Paulo. Entretanto, a entidade se manifestou apenas por nota, em resposta ao e-mail enviado pelo A Hora. Cita que a “recente decisão do STJ não chegou a julgar o pedido do casal”, e que “o recurso da Igreja Universal do Reino de Deus não poderia ser analisado”.

Ainda de acordo com a nota, a entidade religiosa informa que “o dízimo e todas as doações recebidas pela Universal, seguem orientações bíblicas e legais, e são sempre totalmente voluntários e espontâneos”. Por fim, esclarecem que “ainda há um recurso que aguarda a análise do Supremo Tribunal Federal (STF)”. Já os pastores que atuavam naquela época já não atuam em Lajeado.

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Estelionato religioso em 2016

Em setembro de 2016, um caso de estelionato chamou a atenção do país. A Polícia Civil (PC) iniciou investigação contra o pastor, Adair Padinha, após série de denúncias contra um dos responsáveis pela Igreja Pentecostal da Chamada Missionária Mistério da Revelação. Com 38 anos, ele era suspeito de aplicar uma série de golpes contra fiéis de municípios dos vales do Taquari e Rio Pardo, e já teria angariado mais de R$ 200 mil de pelo menos 20 pessoas antes de fugir.

Os golpes eram aplicados de diversas formas. Desde aluguel de prédios, contratações de serviços, obras, empréstimos em nome dos fiéis e uso de cartões de créditos de terceiros. Em Lajeado, pelo menos 80 pessoas frequentavam os cultos.

Mas o pastor não roubou apenas dinheiro e bens materiais. Ele também ludibriou fiéis em momentos delicados. A família do auxiliar administrativo, Magno Fernando da Silva, 31 anos, também foi vítima do falso religioso. Em 13 de dezembro de 2015, Eva Terezinha Machado, 82, avó de Silva, morreu em Cruzeiro do Sul. Ela foi velada nas câmaras mortuárias da cidade e sepultada no cemitério municipal. Padilha acompanhou ambas as cerimônias.

Silva não o conhecia, e desconfiou do homem desde a chegada ao velório. “Ele agia de modo estranho, não queria saber da minha avó. Falava de modo genérico, não condizia com o momento, não nos confortava. Na verdade ficava enrolando. Parecia despreparado.” Porém, em meio à tristeza e comoção, resolveu não dar atenção ao autointitulado “pastor”. Preferiu dar consolo à família. “Estávamos num momento delicado.”

Passados quase nove meses do fato, Silva percebeu que sua intuição não estava errada. Ao ver uma reportagem na televisão, descobriu que Padilha estava sendo procurado pela polícia. “O que mais me indigna hoje é pensar que nesse momento tão importante, do último adeus, havia uma pessoa ali agindo de má-fé. É algo que vamos carregar para o resto da vida. De acordo com o delegado da Polícia Civil, Juliano Stobbe, o falso pastor ainda não foi encontrado.

Rodrigo Martini: rodrigomartini@jornalahora.inf.br | Carolina Chaves da Silva: carolina@jornalahora.inf.br

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