Muito além do chocolate

Comportamento

Muito além do chocolate

Mais do que trocar presentes, com a colheita da macela e o rito da quaresma, famílias esperam a Páscoa com antigas tradições. A data santa é celebrada com fé, bondade e reflexão

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Muito além do chocolate
Heidi mantém a tradição da colheita da macela e espalha os ramos pela casa durante todo o ano
Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

Pequenas flores amarelas que devem ser colhidas antes do sol nascer na sexta-feira em que Jesus Cristo foi crucificado. Elas crescem sem muito critério, no campo ou mesmo na beira do asfalto. Para muitos cristãos, a macela – ou marcela – molhada com o orvalho da manhã do dia santo tem propriedades curativas, além de fortalecer a fé e a tradição.

Na família de Heidi Collischonn Biehl, 61, o hábito era sagrado. Quando criança, a moradora de Cruzeiro do Sul lembra de caminhar pelas matas atrás da pequena planta, além de colher a “barba-de-pau” para enfeitar os ninhos.

Protestante da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no BrasilI (ECLB), a magia que é contada sobre o rito não fazia parte de suas crenças. Mas a colheita era sempre feita nesta época, quando a planta costuma florescer. Ainda hoje, depois de secos, alguns raminhos são espalhados pela casa e duram o ano inteiro.

Caminhada da Macela

Nos anos 80, Heidi era presidente da Juventude Evangélica (JE), e, todos os anos, o grupo, composto por mais de 80 pessoas, procurava uma atividade para a época de Páscoa. Assim, decidiram fazer uma caminhada em busca do chá.

Às 6h da Sexta-feira Santa, os jovens saíam de Lajeado e percorriam mais de 20 km pela região. Passavam pelo bairro Carneiros, e faziam algumas voltas a mais para passear pelo município. Depois, havia um piquenique e, com a tradição de não comer carne no dia, muitos levavam sardinha para o lanche.

“A gente colhia a macela, mas também transformamos essa atividade em um momento para reunir os jovens”, conta Heidi. Pelo caminho, também havia reflexões sobre o significado da Paixão de Cristo e da quaresma, os 40 dias que antecedem a Páscoa.

Outras tradições

Na casa de Heidi, outros ritos de Páscoa também permaneceram com o tempo. Um deles é a confecção da “Osterbaum”, uma árvore feita com galhos secos enfeitados com cascas de ovos coloridas.

Nas casquinhas, ela também costuma colocar o amendoim com açúcar, cultura que veio da Alemanha. “Era costume as mulheres presentearem as pessoas com ovos cozidos coloridos. Mas como aqui, nesta época do ano, as galinhas não põem tantos ovos, elas tiveram que adaptar, e passaram a guardar as cascas e rechear”, conta Heidi.

Hoje, na casa dela, os dois tipos de ovinhos são feitos. Além disso, no Domingo de Ramos, uma semana antes da Páscoa, ela coloca um ramo de palmeira na porta de casa, como foi feito com Jesus ao chegar em Jerusalém.

No dia de Páscoa, também é esperado o momento em que as crianças da família procurem os ninhos escondidos no quintal Outros ovinhos são espalhados pelo gramado e, ao fim da caça, tudo é repartido entre os presentes.

Na vizinhança

Júlio Mallmann, 62, e Valério Beuren, 63, são vizinhos em Alto Conventos e, há 15 anos, colhem juntos a macela. A preparação começa um dia antes com a procura pelos melhores lugares, com mais flores.

Os vizinhos lembram que a macela nasce por conta, longe da poluição. Por isso, é comum encontrá-las em meio à vegetação. Este ano, eles contam que a flor está mais clara e brotou mais tarde.

Benefícios do chá

Uma das flores símbolos do Rio Grande do Sul, a macela atua na indigestão, dores de estômago e falta de apetite. “É um tônico amargo, que melhora as perturbações gástricas, alivia cólicas estomacais, hepáticas e congestões gástricas”, destaca a especialista em ervas medicinais, Maria Liane Dullius Friedrich, 66.

As pequenas flores amarelas também servem para o banho, saudáveis para a pele e para fortificar os cabelos. Segundo Maria, apesar de muitas pessoas cultivarem a crença de que a colheita da macela deve ser feita antes do amanhecer, o chá deve ser colhido depois do orvalho secar, mas ainda pela manhã. “Sempre temos de cuidar para não guardá-las úmidas, para evitar a criação de mofo e torná-las tóxicas. A melhor maneira de manter é em vidro bem fechado”, ressalta. O chá pode ser preparado quente ou frio.

40 dias antes da Páscoa

Apesar da colheita do chá não fazer parte das tradições da auxiliar de escritório Marilena Teresinha Gabriel, 56, outro rito é cultivado. Desde criança, a quaresma é um período importante e, na Semana Santa, dias antes da Páscoa, é quando os costumes são seguidos com mais força. Desde o Domingo de Ramos, a Eucaristia, a paixão e morte de Jesus na sexta, até o sábado de aleluia e o domingo de Páscoa são momentos de reflexão.

“Venho de uma família religiosa e aprendemos a seguir o caminho da fé. Por isso, celebramos todos os momentos especiais da igreja”, reforça.

ENTREVISTA | Josselito Brandão, professor de história

“Uma tradição do Sul”

Qual é a origem da Páscoa?
Brandão – Ela remonta a história do povo hebreu, hoje conhecido como judeus. Eles foram escravizados no Egito, e na liderança de Moisés saem do país. Nesse momento, se deparam com o Mar Vermelho e, diante dele, percebem que estão sendo perseguidos no exército do Faraó. O mar abre e os hebreus passam. Eles deixam a escravidão e tornam-se livres. Essa é a primeira Páscoa. A segunda é quando Jesus teria ressuscitado. Ele é morto na sexta-feira, véspera da Páscoa dos hebreus, sepultado no sábado e no domingo ele ressuscita.

Qual é a origem e qual o significado da tradição de colher a macela?
Brandão – A colheita da macela é uma tradição no Sul. Ela aparece em outras regiões, mas aqui é mais forte. Acredita-se que a macela colhida no início da manhã da Sexta-feira Santa terá propriedades medicinais mais avançadas. Há quem diga que a colheita de qualquer erva no início da manhã potencializa suas propriedades. Pode ser que daí surgiu essa tradição.

A preparação de algumas famílias começa cedo também, na quaresma, o que este período representa?
Brandão – Também está associado aos hebreus. Quando Moisés comunica que o povo hebreu não entrará na terra prometida devido ao seus comportamentos, informa também que eles ficarão no deserto por quarenta anos. Somente quando aquela geração que viveu no Egito já tivesse morrido, as novas gerações, que nunca foram escravizados, entrariam na terra prometida. Então, desses quarenta anos vagando no deserto, surge a quaresma: quarenta dias que antecedem a Semana Santa, que por tradição é um período de jejum, caridade e conversão. A quaresma é uma expressão da religiosidade.


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