BR-386: Memórias e lições da duplicação que transformou o Vale

NO AGUARDO DA OBRA

BR-386: Memórias e lições da duplicação que transformou o Vale

Na próxima segunda-feira, CCR ViaSul inicia obras para duplicar um novo trecho, a partir de Marques de Souza. A Hora relembra como foi a saga para garantia da nova pista de Estrela a Tabaí, um marco na região, que fortaleceu o conceito de “Vale do Taquari”

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BR-386: Memórias e lições da duplicação que transformou o Vale
(Foto: Arquivo A Hora)
Vale do Taquari

A BR-386 não foi apeli­dada de “Estrada da Produção” à toa. A ro­dovia, que liga o norte do Rio Grande do Sul à região metropolitana, possui mais de 50 anos de história e uma enor­me contribuição para o desenvol­vimento do Estado e, sobretudo, do Vale do Taquari.

Ao mesmo tempo em que sua importância econômica au­mentava, o fluxo diário também crescia. Com isso, a capacidade da rodovia foi se esgotando, não suportando a demanda. A dupli­cação era necessária, só que os passos foram lentos e feito por etapas. Hoje, dos 446 quilôme­tros de extensão da rodovia, pou­co mais de 100 são duplicados, entre Lajeado e Canoas.

Na próxima segunda-feira, 15, inicia o prazo para a CCR ViaSul duplicar o primeiro lote previsto no contrato de concessão da ro­dovia. Serão 20,3 quilômetros de obras entre Marques de Souza a Lajeado. A previsão de conclusão é de dois anos. Até lá, quem uti­liza a rodovia deve ter paciência com o andamento dos trabalhos.

Com o assunto em evidência, o A Hora aproveita para resga­tar as memórias de outra du­plicação da rodovia: a saga en­volvendo os 33 quilômetros de Estrela a Tabaí. Batalha de uma década que enfrentou descon­fiança, interrupções, crise fi­nanceira e que foi superada com uma até então inédita união das forças regionais, além de amplo apoio político.

Acidente grave impulsionou luta

Treze mortes. Este foi o saldo da maior tragédia da história da BR-386, ocorrida na madruga­da de 22 de julho de 2008. Por volta das 4h30, uma carreta da Transportadora Giovanella e um ônibus da empresa Ouro e Prata colidiram frontalmente no quilô­metro 371 da rodovia, na ponte sobre o Arroio Concórdia, em Fa­zenda Vilanova.

O choque violento destruiu par­te da frente do ônibus. Os condu­tores dos dois veículos morreram na hora, bem como 11 passageiros do coletivo que fazia a linha Porto Xavier/Porto Alegre. Ainda houve 22 feridos, atendidos nos hospi­tais de Lajeado e Estrela.

Entre eles, Eliseu Mello Martins Lima. Na época com 19 anos, vol­tava de Novo Hamburgo, onde vi­sitou amigos. Ele perdeu o ônibus que o levaria até seu destino, Pal­meira das Missões, e precisou pe­gar outra linha. Estava cochilando quando ocorreu a colisão.

“De madrugada, acordei e tro­quei de poltrona para ir deitado. Me lembro que deu 10, 15 mi­nutos e ocorreu o acidente. Foi um barulho estrondoso, não tem como explicar. Consegui sair e tentei parar os ônibus que esta­vam na rodovia. Um deles quase bateu”, recorda Eliseu, que hoje é engenheiro agrônomo.

Quando foi chamado para de­por na Delegacia de Polícia de Fazenda Vilanova, fez o reconhe­cimento das vítimas por meio de fotografias. Uma delas é a mulher que estava ao seu lado momentos antes da tragédia. “Me salvei por­que troquei de poltrona 10 minu­tos antes”.

Entre pessoas ouvidas pela re­portagem na época, era unânime a opinião de que o acidente seria minimizado se a rodovia fosse duplicada. Por isso, a tragédia impulsionou o movimento, remo­bilizando a região. “São coisas que ninguém deseja que aconteça, mas sem dúvidas foi um motivo muito forte para que a gente pu­desse mobilizar a comunidade e políticos”, admite José Luiz Cenci, ex-prefeito de Fazenda Vilanova.

“Não medimos esforços para que a obra saísse”

A manhã de 29 de julho de 2010 é considerada simbólica na região. Em cerimônia ocorrida às margens da BR-386, o então ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos, assinou a ordem de serviço para início das obras de duplicação. Presidente na épo­ca, Luiz Inácio Lula da Silva par­ticipou do ato por meio de uma videoconferência.

A quantidade de autoridades presentes mostrava o prestígio do movimento. Havia prefeitos, ve­readores, deputados, senadores, empresários e lideranças seto­riais. As obras não iniciaram em 30 dias, conforme previsto, mas aquele momento representava a concretização da luta regional.

Cenci esteve no lugar certo e na hora certa. Um de seus quatro mandatos de prefeito coincidiu com o período onde a mobiliza­ção ganhou força. Ele, que tam­bém tinha ocupado a presidência da Associação dos Municípios do Vale do Taquari (Amvat), foi o es­colhido para liderar o movimento pró-duplicação.

“Era uma demanda antiga. Mui­tos se envolveram e nós tivemos o privilégio de estar, naquele mo­mento, liderando o movimento. Nos atiramos de corpo e alma e não medimos esforços para que a obra saísse. Faria tudo de novo”, comenta, destacando a importân­cia do trabalho conjunto.

“Enquanto prefeito de Fazenda, não tinha força política. Mas na Amvat, representando mais de 30 municípios, se tinha outra pers­pectiva”, lembra.

“Consolidação da região”

A duplicação da BR-386 também representou um mar­co quando o assunto é mobi­lização regional. Foi um mo­mento de unificação do Vale do Taquari. Entidades como o Codevat e a CIC-VT tiveram papel fundamental. A Amvat, antes uma entidade apagada, também ganhou projeção.

“Até o início dos anos 90, pouco se falava em Vale. Era Alto e Baixo Taquari, como se fossem regiões diferentes. Aí surgem movimentos que começam a tratar essa ideia de Vale. E a duplicação foi o grande mote de unificação da região. Ela teve esse mérito de juntar e unificar”, avalia Ney Lazzari, ex-reitor da Univa­tes, que presidia o Codevat na época.

Lazzari participou de inúmeras audiências. Aproveitava os com­promissos como reitor na capital federal para buscar apoio da clas­se política. Por isso, considera que, além da du­plicação em si, o movimento trouxe outros ganhos para o próprio Vale.

“Tão importante quanto a obra física foi uma obra de unificação da região em torno de uma ideia. E que per­maneceu para outras coisas, como a conso­lidação da Univates, do HBB e

outras questões. Aprendemos que, enquanto região, dá para se conseguir mais coisas do que individualmente”.

CCR confirma início dos trabalhos para segunda-feira

Trevo de acesso a Marques de Souza atualmente.

Assinado em 2019, o contrato de concessão da BR-386 prevê a duplicação de 176 quilômetros en­tre Lajeado e Carazinho, além da ampliação das pistas já duplicadas entre Lajeado e Estrela e de Tabaí a Canoas As obras foram divididas em seis trechos e a previsão de tér­mino é para 2036.

O primeiro trecho a ser duplicado contempla 20,3 quilômetros, a partir de Marques de Souza, nas imedia­ções do trevo de acesso ao município, até Lajeado, próximo ao entronca­mento com a ERS-130.

Além da duplicação a CCR ViaSul irá construir 13 quilômetros de vias marginais, dois retornos em nível, seis adequações de acesso, quatro passarelas de pedestres, seis novas pontes, seis alargamentos de pontes existentes, duas passagens inferiores e duas superiores.

Há a expectativa da inclusão de mais 1,6 quilômetros, cuja dupli­cação estava prevista somente para 2026. Este foi um pleito da comissão criada em Marques de Souza, com o objetivo de garantir mais segurança para os veículos que acessam a BR- 386 e necessitam fazer o retorno na pista. Uma segunda ponte sobre o Camping do Stackão e um retorno em nível devem integrar o projeto.

Além disso, lideranças de Lajeado também pleiteiam melhorias no proje­to, como a inclusão de mão dupla sobre duas travessias da BR-386 que no pro­jeto estão propostas como mão sim­ples, nos bairros Olarias e Montanha.

A CCR ViaSul, por meio de sua as­sessoria de imprensa, confirma o início dos trabalhos a partir do prazo esta­belecido. “Seguimos o cronograma, segundo o projeto executivo aprovado pela ANTT. As máquinas já estão no trecho em razão das demais obras de conservação e melhorias”, informou.

A duplicação do trecho também é uma demanda antiga. Em meio à expectativa pelas obras no trecho de Estrela a Tabaí, na década passada, a comitiva se mobilizou também em prol da duplicação de Lajeado a Tio Hugo. Diversas reuniões foram rea­lizadas com autoridades da região de Soledade e também em Porto Alegre e Brasília em busca de apoio.


“Não só o Vale, mas o Estado precisava da duplicação”

José Luiz Cenci era prefeito de Fazenda Vilanova à época do começo da mobilização. Coube a ele a missão de liderar a Comis­são Pró-Duplicação, período marcante em sua vida pública.

Poucas vezes se viu uma mobilização regional tão grande como naquela ocasião. Como a duplicação ganhou tanto apelo?

Essa obra foi feita pensando em duas coisas: nas vidas e no desenvolvimento econômico. Se pesquisar, há 10 anos, o quanto de gente morria na nossa cidade em acidentes, era uma coisa im­pressionante. Quando a rodovia foi construída, os caminhões ro­davam com dez toneladas. Hoje, passam de 70, 80. Não tinha mais como continuar daquela forma. Não só o Vale, mas o Estado precisava da duplicação.

De que forma a duplicação se tornou também uma prioridade federal?

Quando começamos o mo­vimento mais forte, em 2009, o primeiro passo foi reunir o maior número de deputados, de todos os partidos. Influenciou muito o fato de 80% dos deputados gaúchos usarem a BR-386 para se movimentar até suas regiões. A grande virtude foi despertar neles a necessi­dade da duplicação. Trouxemos o Mendes (Ribeiro Filho, ex-deputa­do), que era relator do Orçamento. Tivemos o comprometimento deles em pressionar o governo federal para que a obra saísse.

Quais os maiores desafios que a duplicação teve assim que iniciada a obra?

Nunca faltou recurso. Sempre tivemos dinheiro federal para a obra. O grande problema foi a questão envolvendo os indígenas. A conclusão atrasou por quase dois anos em virtude disso. Tivemos até algumas obras meio absurdas para que pudessem liberar a passagem da rodovia. Além de trancar em termos de tempo, custou muito caro esse acerto com eles.

Fazenda Vilanova tinha uma fama negativa devido aos acidentes na BR. Hoje, a situação é bem diferente…

Semanalmente tínhamos um acidente com morte ou feridos graves na rodovia. Eu mesmo tive uma experiência triste de perder um irmão no trânsito. A elevada feita aqui em Fazenda foi a primeira construída no interior. Pode parecer uma obra muito grande pelo tama­nho do município, mas a discussão levou em conta as vidas perdidas na rodovia. Eramos a terceira cidade do Brasil em proporção por mortes em acidentes de trânsito.

O assunto voltou à tona com as obras previstas para iniciar em Marques de Souza. Mas o projeto causa divergências. Como você avalia esta discussão?

É um trecho complicado, onde a duplicação é extremamente importante. As lideranças precisam se preocupar principalmente com a serra. É preciso de alternativas para os caminhões que ficam sem freio ter uma saída, evitando acidentes. Isso nós vemos nos países desenvol­vidos. Se pudesse dar um conselho para quem está liderando este mo­vimento, é de pensar muito naquele trecho, pensar em preservar vidas.­


DUPLICAÇÃO EM REPORTAGENS

2010 – Ministro dos Transportes assina ordem de serviço, autorizando início das obras. Houve atraso de dois meses e as máquinas só começaram a trabalhar em novembro, em Fazenda Vilanova.

2011 – Índios caingangues ameaçam bloquear a obra caso suas exigências não sejam atendidas. Dnit se compromete em cumprir o acordo estabelecido com a Funai.

2012 – Novo impasse entre Dnit e Funai emperra avanço da duplicação entre Estrela e Bom Retiro do Sul. A entidade indígena cobrava a construção de uma nova aldeia, numa área de 33 hectares.

2014 – Após quase quatro anos de obras, 21 quilômetros de duplicação estão finalizados. Primeiro trecho a ser liberado foi o de Bom Retiro do Sul até a antiga praça de pedágio de Fazenda Vilanova.

2016 – Dnit autoriza reinicio dos trabalhos após um ano de paralisação, com o repasse de mais recursos. Naquele momento, restava a liberação de 11 quilômetros para tráfego de veículos.

2018 – Ocorre a liberação das últimas pistas duplicadas para tráfego de veículos. Com isso, a obra é concluída após oito anos de trabalho, cinco anos de atraso e 41% mais cara do que o previsto.

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