Eram 7h30min do dia 14 de outubro de 1994. Marisa Delazeri assistiu ao último sorriso do filho. A lembrança dos olhos azuis e do cabelo loiro e encaracolado de Marcos retorna a cada manhã, a cada “boa noite”. Era um guri feliz e saudável. Morreu com 3 anos de vida, em uma cama de hospital, vítima de uma sucessão de erros médicos.
O trágico enredo teve início uma semana antes. Enquanto brincava com o irmão gêmeo e com a irmã mais velha no chão batido em frente à casa, Marcos bateu contra o portão e acabou machucando um pequeno tumor localizado na lateral do peito.
Os pais o levaram para o Hospital da Criança Santo Antônio, em Porto Alegre, onde receberam a notícia: o filho caçula necessitaria de cirurgia para retirada de um hemangioma congênito, uma pequena bolsa de água sob a pele.
A família foi informada da possibilidade de realizar o procedimento cirúrgico – considerado simples pelos especialistas – na cidade onde moravam, Ilópolis. No mesmo dia, a operação foi agendada no Hospital Beneficiente Leonilda Brunet. A escolha pelos médicos responsáveis, até hoje, tortura o sono de Marisa.
Os pais do menino contrataram Líris Antônio Zaniol. Ele solicitou auxílio ao colega, o também médico Ernídio Luiz Bassani, chamado para atuar como anestesista. Ambos são profissionais muito respeitados na cidade e admirados pela maioria dos moradores.
Marisa internou o filho no fim da tarde do dia 13 de outubro de 1994. A cirurgia fora marcada para as 7h30min do dia seguinte. Ela voltou tranquila para casa. Além das informações repassadas no hospital da capital, uma semana antes, outras pessoas e profissionais médicos também lhe tranquilizaram a respeito do procedimento. Era uma operação sem risco à vida do menino.
Marcos estava brincalhão no dia da cirurgia. Todo o processo deveria encerrar em menos de duas horas. Marisa passou a viver a mais longa espera da vida. Foram quase 11 horas angustiante, sem nenhum um parecer médico até a notícia trágica.
Sucessão de erros
Conforme relato do Ministério Público (MP), baseado no inquérito policial, Ernídio ficou incubido de anestesiar o paciente. Após aplicar o medicamento, cometeu o primeiro e grave erro. Deveria controlar os efeitos e os sinais vitais do paciente. O Conselho Federal de Medicina é categórico ao atribuir essa obrigação aos profissionais habilitados.
No entanto, Ernídio passou a acompanhar Líris no ato cirúrgico, deixando para a auxiliar de enfermagem a responsabilidade de controlar os batimentos cardíacos de Marcos.
A profissional acatou a determinação, e o controle da frequência do menino foi realizado por meio de um estetoscópio.
Era o único aparelho disponível no hospital para observação dos sinais vitais. Para o MP, a precariedade de recursos tecnológicos do local deveria exigir dos médicos ainda mais responsabilidade.
Entre 7h30min e 8h30min, Marcos sofreu uma parada cardiorespiratória. A razão para o trauma é inconclusa no processo. A principal suspeita é abuso de anestésicos. Naquele momento, os dois médicos trabalhavam no ato cirúrgico, nenhum deles monitorava os sinais vitais. Apenas a auxiliar de enfermagem percebeu a gravidade da situação. Mas com atraso.
Conforme depoimentos dela e de outra enfermeira, o menino apresentava cianose, um dos sintomas da falta de oxigênio no sangue. Lábios, unhas e dedos ficam roxos ou azulados. Isso comprova que a parada cardíaca já vinha de alguns minutos.
A equipe médica, tão logo percebeu a gravidade do quadro, iniciou os procedimentos de ressuscitação. Posições de ventilação, massagem cardíaca e aplicação de bicarbonato de sódio foram práticas utilizadas. Marcos foi reanimado. Em coma, o menino passou a receber oxigenação artificial após o fim da cirurgia.
Negligência e omissão
Mesmo após o ocorrido, nenhum exame laboratorial ou de raio X para investigar possíveis causas e consequências da parada cardíaca foram solicitados pelos médicos. Os peritos do Instituto Médico Legal (IML) – que examinaram o cadáver do menino – atestam o erro.
Para eles, a solicitação era fundamental para averiguar possíveis traumas em ossos ou órgãos internos. Pneumotórax ou quebra de costelas após manobras de reanimação são raras, mas possíveis. Líris, em depoimento, culpou a falta de um radiologista e de aparelhos para realizar exames laboratoriais no hospital.
Outro erro grave foi cometido. Segundo especialistas, a transferência de pacientes ressuscitados para Unidades de Tratamento Intensivos (UTI) é extremamente necessária. Não ocorreu. Pior. Nenhum deles sequer avisou a família da gravidade do caso.
Em depoimento, Líris afirmou não ter solicitado a remoção do paciente porque “o quadro de melhora progressiva lhe dava esperança de enviar em breve o paciente para o quarto”. Também disse que as ambulâncias disponíveis eram inadequadas para o transporte de Marcos – em função da debilidade do paciente –, e observou ainda a precariedade das estradas.
Para o MP, as declarações de Líris são contraditórias. Conforme cita o promotor Cláudio Ari Mello, ao afirmar que Marcos estava debilitado para ser transferido, o médico contradisse a informação de que o paciente apresentava melhora progressiva.
O quadro grave do menino também foi confirmado pela enfermeira. Segundo ela, o paciente sempre apresentou dificuldade respiratória após a cirurgia. Por volta das 12h, Líris foi chamado novamente. O problema havia se agravado. O médico ainda voltaria diversas vezes à sala de recuperação para avaliar Marcos, confirmando a gravidade do caso.
“Quando encostei no meu filho, ele estava gelado”
Marcos permaneceu durante toda a tarde na sala de recuperação, em coma. Os familiares não puderam socorrê-lo, ou tampouco levar o menino para um hospital melhor estruturado. Os médicos sempre ocultaram os fatos e inibiram a presença dos parentes na sala de recuperação. “Eles me disseram, mais de uma vez, que estava tudo bem”, lembra a mãe aos prantos, após 19 anos.
Por volta das 18h, o menino sofreu uma severa parada respiratória. Os médicos intervieram novamente. Só então constataram a presença de um pneumotórax hipertensivo, que comprimiu o pulmão. Em seguida, Marcos sofreu a segunda e fatal parada cardiorespiratória.
Ele morreu às 18h20min, quase 11 horas depois de entrar na sala de cirurgia. “Quando encostei no meu filho, ele estava gelado.”
“Sofremos tentativas de homicídio”
Marisa, hoje com 49 anos, não fala sobre Marcos. Na verdade, ela não consegue. “É dolorido.” A auxiliar de escritório cobra justiça e punições mais severas aos médicos. “Não é pelo dinheiro. Eles não podem ficar impunes.”
Após iniciar os processos contra os responsáveis, Marisa comenta ter sido vítima de, pelo menos, três tentativas de homicídio quando trafegavam por rodovias. “Tentaram jogar nosso carro para um penhasco.” Na época, ela e o marido chegaram a prestar queixa na delegacia local.
Os autores dos supostos atentados nunca foram descobertos. Meio ano depois, o casamento dela ruiu. Cansada de algumas hostilidades e represálias de moradores de Ilópolis, foi morar em Lajeado, onde se casou e criou os outros dois filhos.
O pai de Marcos vive em Minas Gerais. Há 11 anos, em entrevista ao Jornal O Informativo, ele lembrou dos momentos trágicos de outubro de 1994. “Nos disseram que seria uma cirurgia simples. Mas a forte dose anestésica provocou parada cardíaca. Eles tentaram massagear e até quebraram duas costelas do menino”, disse na época.
“A pena foi muito branda”
Para a advogada da família, Saionara Alievi Schierholt, a condenação por homicídio culposo em junho de 1998 e as penas de um ano e dez meses de detenção, aplicadas pelo juiz Paulo Cesar Filippon, foram brandas. “O processo penal está encerrado, dessa forma branda, infelizmente. Hoje, ainda corre o processo civil indenizatório.”
A cobrança do valor da indenização teve sentença em 2002. Houve recurso de apelação de ambas as partes, que aumentou a condenação dos réus em 2004. Desta apelação, os réus recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, que repassou novamente o processo para o Tribunal de Justiça do Estado (TJRS).
Em 2011, o TJRS confirmou o primeiro julgamento, condenando os réus a pagar os danos morais. Desta decisão, os réus novamente recorreram ao STJ, onde o processo permanece desde maio do ano passado. Os médicos recorreram contra o pagamento aos irmãos do menino. Para eles, os únicos a serem beneficiados devem ser os pais.
Cremers inocenta. Médicos se calam
De acordo com a assessoria de imprensa do Conselho Estadual de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), o processo que investigou os atos dos médicos correu seguindo o rito usual, que envolve depoimentos, testemunhas, documentos e todos os detalhes dos processos operatórios.
Ernídio foi julgado e não recebeu pena pública. Já Líris foi penalizado com uma suspensão de até 30 dias. O Cremers julga apenas os aspectos éticos da prática médica, que corre à parte da Justiça comum.
Os dois médicos foram contatados. Líris se mostrou surpreso com a reportagem. Disse que não falaria sobre o assunto, pois o processo é analisado pela Justiça. Ernídio também se negou a dar entrevistas. Disse apenas que pretende processar o jornal pela divulgação do fato.