Nos anos 1950, a expansão do Americano e do Hidráulica

HISTÓRIA DOS BAIRROS

Nos anos 1950, a expansão do Americano e do Hidráulica

Hoje localizados na área central de Lajeado, esses bairros eram muito diferentes há 70 anos. Foi na década de 1950 que a expansão dessas localidades começou, com a instalação da Companhia Souza Cruz e da hidráulica da Corsan. Anos mais tarde, a construção da BR-386 mudou a dinâmica dos bairros e de toda a cidade

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Atualizado segunda-feira,
01 de Março de 2024 às 08:10

Nos anos 1950, a expansão do Americano e do Hidráulica
A foto é dos anos 1950. Mostra a Companhia Souza Cruz, no tempo em que nem a BR-386 existia e a Av. Acvat não estava sequer aberta. Nessa época, o Americano e o Hidráulica eram formados por propriedades rurais

O Hidráulica, no princípio, era uma extensa área rural, afastada do centro da Vila de Lajeado pelo Arroio do Engenho (que hoje é tapado e forma a Avenida Décio Martins Costa). “Do lado de lá”, ficava somente o cemitério católico, em um terreno doado por Fialho de Vargas.

Mais acima, um engenho e serraria funcionavam. A antiga roda d’água, hoje, faz parte do Parque do Engenho, uma lembrança do início da povoação urbana de Lajeado, por volta dos anos 1860.

Quando a escravidão foi abolida no Brasil, em 1888 com a Lei Áurea, foi no outro lado do Arroio do Engenho que os negros libertos encontraram morada. É o que contam os estudos do historiador José Alfredo Schierholt.

No barranco entre a rua Lothar Felipe Christ e o canal, ergueram suas primeiras moradias, no que ficou conhecido como Morro dos Negros. A nomenclatura seguiu por anos, até a construção da grande hidráulica da Corsan, bem no topo, nos anos 1950.

O casal Collischonn mora há mais de 60 anos no bairro, quase perderam a casa quando a BR-386 foi construída

Sem água no bairro dos reservatórios

O Hidráulica é morada do historiador Wolfgang Collischonn há mais de 60 anos. Nascido em Marques de Souza, veio estudar em Lajeado ainda na juventude e, por volta de 1957, se mudou com os pais para o bairro. “Aqui era tudo zona rural ainda, tinha uma meia dúzia de casas. Construí a minha própria em 1960, quando casei”, conta.

Aos 89 anos, ainda mora com a esposa Karin, 88, na mesma residência. Na época em que se mudaram, a BR-386 sequer existia e Karin lembra de andar por pequenos trilhos até os vizinhos no que é hoje o outro lado da rodovia.

Naquele tempo, a infraestrutura do bairro era mínima, as ruas eram todas de barro vermelho, que ficava intransitável em dias de chuva. Collischonn lembra de nem conseguir acessar a garagem da própria casa.

“Quando nos mudamos para o Hidráulica, meus amigos diziam que tínhamos ido morar em Carneiros, tão longe que era”, brinca. Logo depois que o casal se instalou no terreno, um oficial veio anunciar que a casa teria de ser demolida e indenizada. O traçado da futura rodovia passaria por ali.

“Felizmente perceberam que teriam de fazer muitas desapropriações no Americano e decidiram empurrar o traçado uns 200 metros, nossa casa ficou.”

Uma dificuldade que Karin lembra bem é o fornecimento de água. “Os reservatórios da Corsan ficavam no Hidráulica, mas muitas casas aqui no bairro eram em terrenos mais altos e não tinham água encanada”, conta.

Wolfgang explica que a família tinha uma cisterna e um poço. “Mas em épocas de seca era complicado. Mais de uma vez um caminhão-pipa da Lacesa veio abastecer nossa cisterna”, lembra o historiador.

A água só chegou de vez nos anos 1970. E, a partir das melhorias na infraestrutura do bairro, com mais ruas e calçamento, o Hidraulica começou a crescer.

A fábrica da Fruki foi inaugurada no Hidráulica em 1971. Na foto, ainda tinha o nome de Kirst & Cia

“Uma grande rodovia”

Foi nessa época que o bairro atraiu uma das maiores empresas de Lajeado: a Fruki Bebidas. Quem sabe bem essa história é Nelson Eggers, 86, que está há mais de 60 anos à frente da companhia. Também é morador do Hidráulica há décadas.

Eggers é neto do fundador da então chamada Kirst & Cia, de Arroio do Meio. Foi com essa nomenclatura que a empresa veio a Lajeado, no fim dos anos 1960. “Eu tinha um amigo que trabalhava no Daer, como engenheiro. Ele era de Estrela e me mostrou onde passaria o traçado da futura rodovia”, conta.

Na época, a família queria expandir a empresa e melhorar os processos de produção. Naquele tempo, os produtos ainda eram enviados de barco até Porto Alegre, por falta de estradas adequadas. “Então decidimos comprar o terreno onde a Fruki está hoje, eram vários lotes pequenos de colonos. Mas eu enxergava que, em 50 anos, essa seria uma grande rodovia.”

A fábrica foi inaugurada em 1971. A partir daí, a Fruki recebeu o nome atual e se consolidou na fabricação de refrigerantes. “A gente era referência no engarrafamento de cachaça, mas não queria continuar com isso, nem com o nome Bella Vista”, lembra Eggers. O nome da companhia que, em 2024, celebra 100 anos, foi escolhido para representar sua matéria-prima, frutas, e honrar sua origem, Kirst.

Dia da inauguração da Escola Moisés Cândido Veloso, em 1968, na presença do então governador Walter Peracchi Barcelos

O acendedor de lampiões

No fim da rua Paraíba, no bairro Hidráulica, a escola Moisés Cândido Veloso guarda um pouco da história de Lajeado. O nome é uma homenagem ao homem que deu início ao educandário, em 1957.

Natural de Taquari, Moisés Cândido Veloso nasceu no ano de 1873. Veio a Lajeado em 1902. Aqui, foi incumbido pelo intendente municipal (prefeito) Francisco Oscar Karnal de cuidar da iluminação pública da vila. Todas as noites, Veloso acendia cada um dos lampiões de querosene da cidade.

Foi na década de 1930 que começou a alfabetizar adultos no turno da noite. Eram cerca de 20 estudantes e Veloso arcava com os custos de modo voluntário.

Moisés Cândido Veloso doou o primeiro terreno para a escola. É lembrado por sua dedicação à educação e à cultura

Mais de vinte anos depois, o Grupo Escolar Vila Moisés foi oficialmente criado, em 1957. Foi Veloso quem doou o terreno para a escola, ao lado da própria casa, na esquina entre as atuais ruas Lothar Felipe Christ e Alberto Torres, no Hidráulica. Ali, pouco mais de 40 alunos se amontoavam em uma pequena construção de madeira.

Veloso morreu em 1963, aos 90 anos, e não chegou a ver o atual prédio da escola. A construção na rua Paraíba foi inaugurada cinco anos mais tarde e, em 1976, se tornou uma escola estadual.

Na memória, a antiga Souza Cruz

A companhia de cigarros Souza Cruz mudou a dinâmica de Lajeado. Na época em que foi instalada, por volta de 1950, era a maior indústria da pequena cidade. Nem mesmo a BR-386 existia.

O fumo vinha do interior pelas antigas entradas e, no complexo do Americano, passava pela caldeira e era enfardado. No bairro São Cristóvão, pavilhões armazenavam o material que, mais tarde, era transportado até Porto Alegre e depois exportado. Ali, funcionou antes a empresa de Papel Pirahy, instalada para fornecer papel para os maços de cigarro.

Em Lajeado, eram cerca de 250 funcionários. Em época de safra, dezenas eram contratados para ajudar na seleção das folhas de fumo, em especial, mulheres, que encontravam no trabalho temporário uma renda extra para as famílias, muitas que vinham do interior para a cidade. O relato das safristas da Souza Cruz é repetido em muitos bairros de Lajeado, tamanho era o impacto da empresa na época.

Na foto, a Souza Cruz está ao centro, com a Av. Acvat aberta, em estrada de chão. Ali, por um tempo, funcionou a Rodoviária de Lajeado

Foi no ano de 1957 que Maria Lurdes Schnorr, 85, começou a trabalhar na fumageira. Nascida em Santa Clara do Sul, se mudou com a família para o São Cristóvão aos 14 anos, quando o pai comprou parte das terras que hoje formam o bairro.
Maria se formou na primeira turma de Letras da Univates, em 1972, e, nos mais de trinta anos que trabalhou na Souza Cruz, se dedicou às funções administrativas e de secretariado. “Lembro que tudo era extremamente confidencial e não podia haver uma rasura sequer nos relatórios”, conta.

O bairro Americano pegou o nome por causa da fábrica, administrada por estrangeiros que falavam inglês, “os americanos”, embora a companhia, na realidade, fosse da Inglaterra, controlada pela British American Tobacco. “Tudo era muito correto e regrado, cobravam muito horário e disciplina. Mas sempre gostei de trabalhar lá”, revela.

Na época em que a Souza Cruz funcionava em Lajeado, a Avenida Alberto Pasqualini tinha o nome de Presidente Roosevelt e era feita de paralelepípedo, a Av. Acvat era uma estrada de chão batido. Ali nas imediações, um antigo hotel funcionava e o Bar de Antônio Schweitzer era ponto de parada para os funcionários da empresa.

Maria foi transferida para a companhia em Santa Cruz do Sul em 1979, alguns anos antes da fábrica fechar em Lajeado, em 1982. “Lá eu era responsável por recepcionar os estrangeiros, importadores de fumo. Uma vez tive que levar até um sul-africano ao dentista”, conta. Maria trabalhou na fumageira até 1992, quando se aposentou e passou a se dedicar às artes.

Na memória, está o antigo lago artificial da Souza Cruz, que ficava ao lado da empresa, na Av. Alberto Pasqualini (onde hoje fica o McDonald’s)

Lembranças da infância

A história de Luis Fernando Dexheimer, 64, com o bairro Americano é antiga. Ele nasceu num chalé que, pouco tempo depois, deu lugar à BR-386. “Nossa casa foi indenizada porque a rodovia estava sendo construída, então meus pais compraram um terreno um pouco mais afastado, perto da Souza Cruz, cresci aqui no Americano”, conta. Ainda hoje, Dexheimer mantém a construção e, no local, administra uma revendedora e mecânica de motos, desde 1986.

“Eu estou aqui no bairro há uns 60 anos. Lembro bem ainda da Souza Cruz, os caminhões vindos do interior com fumo estacionavam na redondeza.” Dexheimer conta que, em todo início de turno, soava um apito e, ao final, também. O cheiro do tabaco fez parte da infância do lajeadense.

“Outra coisa que me lembro são as explosões na época em que fizeram o trevo da BR.” Os engenheiros da época usavam dinamite para detonar as rochas e formar o que hoje é o principal acesso a Lajeado, na Av. Alberto Pasqualini. “Os pedregulhos voavam até aqui em casa, lembro que a gurizada saía procurando os fios que restavam das explosões. Numa dessas, desenterrei uma banana de dinamite, que não tinha estourado. Corri o mais longe que consegui”, brinca.

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