Trauma da enchente permanece seis meses depois

CHEIAS DE 2023

Trauma da enchente permanece seis meses depois

Famílias em luto aguardam respostas. Pelas ruas, ainda restam entulhos, casas destruídas e prédios condenados. Nas dez cidades mais atingidas, comunidade tem viva na memória as cenas dos dias 4 e 5 de setembro

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Trauma da enchente permanece seis meses depois
Loiva Kerper perdeu todos os móveis e eletrodomésticos. Do segundo piso da casa, em Lajeado, ouvia o pedido de socorro dos vizinhos. (Foto: Filipe Faleiro)
Vale do Taquari
Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

“Eu escuto os gritos dela todas as noites. Acredito que nunca vou esquecer”. As palavras de Loiva Kerpen, moradora de Lajeado, remontam as horas de angústia e medo. Era por volta das 3h daquela terça-feira, 5 de setembro, quando a água chegou no segundo andar da casa dela, na travessa Doutor Parobé.

Ela e a vizinha Rosani de Borba precisaram subir em uma janela para escapar da fúria do Rio Taquari. Dali, conseguia ouvir os pedidos de socorro de uma moradora próxima. “Ela estava com os dois filhos. Depois fiquei sabendo que os três morreram. Foi muito triste.”

Dentro da casa, perdeu tudo. Eletrodomésticos, móveis, roupas. “Não tínhamos como ligar para pedir socorro. Chamávamos das janelas. Quando vi, veio um caiaque. Na frente da minha casa, outra vizinha estava no telhado, prestes a desabar. Daí pedi para salvarem ela primeiro”, relembra.

Além da vizinha Rosani e de Loiva, também estavam dois filhos dela, um de 19 e outro de 15 anos. “Fomos sair quando o meu neto veio de caiaque. Foi um desespero. A água tinha passado da cintura. Já vivemos com enchentes, mas nunca como essa.”

“Eu perdi tudo. Não tenho mais nada. A casa está um caco. Não tem como entrar, a parede do quarto caiu. Hoje, as roupas que tenho foram doadas”, conta o aposentado de Lajeado, Sérgio de Moura.

A inundação de setembro se tornou a maior tragédia natural da história do Rio Grande do Sul. Inclusive, existem registros de que o nível do Rio Taquari tenha sido superior ao registrado na cheia de 1941.

Os pesquisadores Rafael Rodrigo Eckhardt (mestre em Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto) e a engenheira ambiental, Sofia Moraes, afirmam existir provas de que o nível da inundação superou em pelo menos 50 centímetros a inundação de 1941.

Pelo registro oficial, o nível da água alcançou 29,53 m em Lajeado e 29,62 m em Estrela. A força da água resultou em uma destruição nunca vista. Foram confirmados 53 óbitos e ainda há pelo menos cinco pessoas desaparecidas.

“Sentimento de vazio”

Onde está o corpo de Beatriz Pietta, de 72 anos, ainda é uma dúvida latente para o irmão, Valcenor Leopoldo Fleck. Na semana passada, recebeu um documento do Instituto Geral de Perícias (IGP), que admite um erro grave na identificação da vítima.

Ela era moradora de Muçum. Na casa da família, os óbitos do marido, Álvaro Pietta e o filho, Maximiliano, foram identificados. Na época, Valcenor veio do Paraná para identificar o corpo da irmã. “Eu vi o rosto dela. Fizemos o velório coletivo, lá em Vespasiano Corrêa. Depois, desenterraram o corpo, dizendo que não era a Beatriz. Tudo o que fizemos pareceu em vão.”

Separados ainda crianças, após a morte da mãe biológica, eles foram criados por famílias diferentes. Ele em Guaporé e ela em Muçum. Mesmo assim, seguiam próximos. “Sempre nos víamos. Tínhamos uma ligação muito forte. Dos meus irmãos, só restavam ela e eu.”

Depois que se mudou para o Paraná, procurou manter os diálogos. “Com a internet, voltamos a nos falar quase todos os dias. Tomávamos chimarrão juntos por chamadas de vídeo.”

Sem saber o destino da irmã, restam as memórias. “Eu devo para ela um velório de verdade. Se eu soubesse onde está sepultada, seria mais fácil pra mim. É um sentimento de vazio que está comigo todos os dias.”

Déficit habitacional

Ao todo, dez cidades foram atingidas pela inundação. A força da água foi mais violenta em oito, em especial na parte alta da região, em Muçum, Encantado e Roca Sales.

Conforme relatório da Universidade Federal do RS (Ufrgs), feito pela equipe técnica do Grupo de Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (Gespla), pelo menos dez mil residências foram atingidas pela água, das quais duas mil com coluna de água acima dos três metros.

Das que não foram levadas pela força da água, houve imóveis com danos irreversíveis, com estrutura comprometida. O estudo aponta que as construções atingidas representam 11,7% do número total em cinco municípios (Roca Sales, Muçum, Encantado, Arroio do Meio, Lajeado e Estrela).

Laura Eloy saiu antes da enchente chegar na casa, na rua Barão de Santo Ângelo. Foi para familiares na Fernando Abott, onde nunca havia chegado água até setembro passado. (Foto: Filipe Faleiro)

Na casa de Laura Eloy, a água passou do telhado. “Ficou tudo embaixo da água”, relembra. Depois de perder tudo, retornou para a moradia, na rua Barão de Santo Ângelo, em Lajeado. “Não tenho nada de móveis. Tudo improvisado. Não recebi nenhuma ajuda do setor público. Parece que eu nem existo.”

Nas casas próximas de onde ela mora, diversas placas de venda e aluguel. “Muitos querem sair daqui. Eu não tenho mais idade para sair. Vou vender aqui e vou para onde? E mesmo assim, quem vai querer?”

Essa desvalorização é confirmada pelo prefeito Marcelo Caumo. “Há uma situação difícil. Muitos olham para o rio com medo e desconfiança. Nós decidimos manter os aparelhos públicos nas proximidades do Taquari para tentar estancar esse abandono.”

Na avaliação dele, aos poucos esse sentimento ficará para trás. “Nós temos que trabalhar para reduzir o impacto das cheias. Diminuir o tamanho das inundações. O que aconteceu ano passado foi algo extraordinário e que esperamos que não se repita.”

Nenhuma casa provisória entregue

Moradias provisórias em Arroio do Meio foram prometidas pelo governo do Estado e durariam no máximo 60 dias para ficarem prontas. Passados seis meses, nenhuma família foi realojada às unidades. (Foto: GABRIEL SANTOS)

Para reduzir o sofrimento das famílias, o governo do Estado apresentou a construção de 200 casas provisórias. Cada município precisava se inscrever no programa.

Deste total, foram confirmadas 48 (20 em Roca Sales e 28 em Arroio do Meio). Estrela e Cruzeiro do Sul se inscreveram no programa, mas desistiram de continuar.

Pelo projeto, feito em parceria com o Sindicato das Construtoras do RS (Sinduscon), as unidades seriam de rápida conclusão. Em no máximo 60 dias seria possível finalizar o lote de Arroio do Meio e acomodar as pessoas. Depois de seis meses da tragédia, nenhuma moradia foi concluída.

Em Arroio do Meio, a inundação de setembro danificou mais de mil moradias. No total, foram 388 condenadas pela Defesa Civil. O plano do município é agilizar a construção de 70 moradias (28 provisórias e 42 a partir de convênio com o Ministério Público). Também busca-se área para construir 100 casas pelo Minha Casa Minha Vida Calamidade.

Em Roca Sales, as casas provisórias ficam no bairro Sete de Setembro. O modelo é inspirado nas vilas de passagem de São Sebastião, litoral de São Paulo. São dois tipos de moradia. Para famílias de duas pessoas, são 18 metros quadrados. Com mais, a unidade sobe para 36 metros quadrados.

Mais de 1,4 mil moradias foram danificadas pela inundação. Um total de 192 ficaram destruídas e 138 com a estrutura comprometida.

Rastro de destruição

  • Na bacia hidrográfica do Taquari/Antas, há 119 municípios. Em número de cidades, é a maior do país. Pelo limite das cidades, há diferentes regras para uso do solo e também com áreas habitadas dentro de terrenos alagáveis.
  • Na região, foram dez cidades atingidas (Muçum, Encantado, Roca Sales, Arroio do Meio, Colinas, Lajeado, Estrela, Cruzeiro do Sul, Bom Retiro do Sul e Venâncio Aires).
  • Especialistas consideram que a inundação foi a maior tragédia natural na história do Rio Grande do Sul. Pelos estudos, o nível da água teria ultrapassado em pelo menos 50 centímetros o evento de 1941.
  • Níveis oficiais apontaram 29,53 metros em Lajeado e 29,62 metros em Estrela.
  • Foram 53 óbitos. Ainda há cinco desaparecidos.
  • Mais de 10 mil residências foram atingidas, com danos irreversíveis a duas mil delas.
  • O Governo do RS prometeu 200 casas provisórias em parceria com o Sinduscon, mas apenas 48 foram confirmadas, e nenhuma foi concluída após seis meses.
  • O Governo Federal oficializou mais de 500 moradias pelo Minha Casa Minha Vida Calamidade. São cerca de 360 para áreas urbanas e o restante para unidades rurais.
  • Para as empresas, foram dois modelos de créditos. Aos negócios do Simples Nacional, os empréstimos terminaram em dezembro.
  • Para indústrias de grande porte, o formato desagradou e nenhuma buscou os recursos pelo BNDES.

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