A fúria das águas

Opinião

Marcos Frank

Marcos Frank

Médico neurocirurgião

Colunista

A fúria das águas

Por

Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

“Quanto tempo temos antes de voltarem
Aquelas ondas
Que vieram como gotas em silêncio
Tão furioso
Derrubando homens entre outros animais
Devastando a sede desses matagais…”
Zé Ramalho

Foi necessário 82 anos para a enchente voltar com toda força e superar todas as vezes que as águas invadiram as terras vizinhas ao leito do Rio Taquari.

Na última vez que o rio veio com tanta força a Europa estava ainda convulsionada pela guerra . Lajeado, por sua vez, era um vilarejo que terminava logo além do Hospital São Roque. Depois dali o caminho seguia se arrastando campo adentro passando por aquele cemitério que ainda hoje marca o fim da rua Júlio de Castilhos.

Naquele triste ano de 1941 foi a última vez que as águas vieram com tamanho força, rolando, engolindo e colocando tudo abaixo.

Para que se tenha ideia, era tão pequeno o vilarejo que pouca coisa existia para além do local onde décadas depois, a futura BR 386 passaria cortando e separando a cidade em duas metades.

Essa obra, monumental até para os dias de hoje, trouxe junto uma ponte sobre o aparentemente tranquilo rio Taquari e sua continuação rumo ao noroeste do estado iria dividir a velha Lajeado, nascida a beira do rio falando alemão daquela que se ergueria para o lado esquerdo da dita obra, misturando línguas e que hoje chamamos de bairro São Cristóvão.

Não que Lajeado não tenham experimentado outras desgraças nesse intervalo de 82 anos. Na noite quente de 13 de janeiro de 1953 ocorreu o incêndio da igreja matriz. Apenas em 1958 ele seria reinaugurada.

Mais tarde, em 1 de setembro de 1967 um tufão arrasou Lajeado deixando 6 mortos. Mais recentemente a terrível pandemia de COVID-19 cobrou mais de 200 vidas de lajeadenses.

Essas últimas duas catástrofes mais algumas dezenas de enchentes tivemos em comum com o restante da região.

As enchentes, é preciso que se diga, não foram nunca embora, pelo contrário, vinham regularmente como que para mostrar aos tantos novos moradores como eu, a força dessas águas.

Tanto vieram que foram acostumando velhos e novos moradores a uma rotina de erguer móveis, sair de casa e voltar. Confesso que nunca entendi bem essa placidez dos ribeirinhos com o rio.

A mim, que vinha de um local sem enchentes, aquelas construções que teimavam em lutar com o sobe e desce das águas não faziam sentido e nem traziam seguranca. E até hoje custo a acreditar no sossego dos que vivem no caminho desse monstro da natureza e que tal qual um vulcão, acorda de tempos em tempos.

Como uma fera selvagem ele foi nos acostumando com sua presença e seu humor e nos fez acreditar numa falsa trégua.

Pois bem, esse período de convivência em paz com o rio acabou na última segunda-feira à noite. A longa trégua entre as águas e os humanos terminou de forma trágica. Dessa vez não foram somente danos materiais, o rio exigiu a moda dos velhos deuses, sacrifício de vidas, dezenas delas.

Por muito tempo lembraremos desse triste início de setembro e final de inverno como o dia em que o rio veio com pressa e fúria, devorando vidas, pontes e casas.

Passada a surpresa e o assombro, vem a dor e o luto seguidos do árduo trabalho de tudo limpar e reconstruir.

Se no meio de tanta desgraça estamos vendo os que procuram culpados para estender o velho dedo seco para acusar; se há os “influencers” a papagaiar e fotografar o quanto são bondosos e os turistas de catástrofes, lembremos sempre que eles são minoria e o que ficará é a força desse povo a resistir e reconstruir, em silêncio e sem vaidade.

Passado tudo, a lição que fica é a de nunca confiar totalmente nas previsões humanas sobre as forças da natureza.

Que na próxima vez que o rio começar a mostrar suas garras, ele não deve encontrar tantas propriedades em seu caminho e, como prevenir não parece possível, que aprendamos a evacuar precocemente os locais para evitar essa dor que hoje nos dilacera o peito.

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