Amor que machuca não é amor

RELACIONAMENTO ABUSIVO

Amor que machuca não é amor

Uma agressão pode começar como brincadeira e o pequeno empurrão pode progredir para violência física ou psicológica. Conforme a OMS, uma em cada três mulheres no mundo é vítima de relacionamento abusivo. Na família, amigos e profissionais da saúde, ela pode encontrar a força para superar o trauma

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Amor que machuca não é amor
Ao longo da vida, uma em cada três mulheres é submetida à violência física ou sexual por parte de um parceiro. Crédito: Divulgação
Vale do Taquari

“ Fiquei com os cinco dedos dele marcados no meu rosto. Saí de perto e fui lavar uma louça. Enquanto lavava, minhas lágrimas escorriam junto com a água da torneira”. A primeira agressão física ocorreu depois de dois anos de namoro. Antes, a violência já acontecia de forma verbal. Depois do primeiro tapa, foi preciso de cerca de oito meses para se libertar do companheiro, e mais um ano de auxílio para superar o trauma.

A estrelense de 26 anos, que não quis se identificar, está entre as milhares de mulheres no mundo que sofrem ou sofreram algum tipo de abuso por parte do parceiro. E mais um exemplo da importância da família no processo de separação. Ela conta que conheceu o ex-parceiro quando tinha 17 anos, na casa de amigos. Na época, ele namorava, e ela não tinha prestado muita atenção. Um mês depois, recebeu uma mensagem, dizendo que estava solteiro e a convidava para sair.

A primeira vez

No primeiro encontro, marcado para às 20h, ele chegou duas horas atrasado, o que se repetiu muitas vezes depois. O relacionamento evoluiu e eles passaram a sair juntos para festas com amigos. Em momentos como esses, ele se soltava, bebia e, muitas vezes, faltava com respeito com ela e a obrigava a não dizer nada.

“Eu achei que se a gente fosse morar juntos, talvez ele mudaria, porque seria só eu e ele. Ele falava muito que mulher nunca apanharia dele, que achava muito errado e eu sempre acreditando naquilo”, conta a estrelense. No entanto, quando ficava irritado, batia na parede e levantava o tom de voz.

Até que um dia, em uma briga, a agrediu pela primeira vez. A depressão veio pouco depois e os dias dela se resumiram a comer e dormir. No período, chegou aos 130 quilos. Mesmo assim, não tinha coragem de desistir do relacionamento, pelo medo de perder coisas boas que ainda via nele.

Os últimos 8 meses

O segundo episódio marcante foi quando ele a xingou por não ter recolhido as roupas dele do varal. Ela foi buscar refúgio na casa da mãe naquela noite, mas não conseguia contar o que estava acontecendo.

Uma das últimas discussões em uma festa com amigos, ele bebeu muito, foi desrespeitoso com ela e outras mulheres do grupo. “Chegou um certo horário que ele estava muito passado e eu chamei minha sogra para nos buscar. Quando descobriu, começou a gritar comigo”.

Ela estava sentada em uma cadeira de praia. Ele encostou na testa dela e a empurrou até que a cadeira quebrasse. Naquela noite, ela foi dormir com dois hematomas no couro cabeludo. “A gente ficou 3 anos juntos e os últimos 8 meses foram o maior inferno da minha vida”, recorda.

De volta pra casa

Aquela foi a última vez que ele encostou nela. Depois disso, ela pegou as roupas que cabiam em uma sacola e voltou para a casa da mãe. “É um pouco desconfortável, porque tinha hábitos sozinha. É um processo difícil, mas vale a pena voltar quantas vezes for necessário para não precisar ficar em um relacionamento abusivo”, acredita.

Mas a separação nem sempre significa liberdade. Na maioria dos casos, é preciso terapia para superar a dor. No caso da estrelense, a Constelação Familiar, uma modalidade de terapia alternativa, auxiliou no processo. E demorou mais de um ano para ela conseguir dizer que amava alguém, inclusive a mãe, ou aceitar abraços outra vez.

“Depois disso eu decidi que nunca mais ia viver relacionamentos assim. Eu sabia o que eu queria pra vida, e com certeza não era o que eu vivi com ele. Esse amor doentio, que machuca, não é amor de verdade. Amor é uma coisa linda”.

Uma em cada três já sofreram  violência

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que ao longo da vida, uma em cada três mulheres, que representa cerca de 736 milhões no mundo, é submetida à violência física ou sexual por parte de um parceiro íntimo, ou violência sexual de um não parceiro.

Pensando nisso, dois projetos de pesquisa conduzidos por Denise Bisolo Scheibe e Joana Bücker necessitam de voluntárias. O objetivo do trabalho é avaliar o impacto da violência sofrida por mulheres em aspectos como reserva cognitiva e memória emocional.

Para isso, as pesquisadoras estão recrutando mulheres entre 18 e 60 anos, que tenham sofrido alguma violência causada por parceiro íntimo e não estão mais com seu agressor.

A hipótese é que essa experiência traumática esteja associada a um prejuízo cognitivo, de memória, atenção, inteligência e de memória emocional. Para se inscrever, basta entrar em contato pelo e-mail neuropsicologia@univates.br ou pelo telefone (51) 99494-1705.


ENTREVISTA | Carine Bernhardt Duarte, psicóloga clínica sistêmica

“O relacionamento abusivo vai se apresentar de diferentes formas”

O que configura um relacionamento abusivo?

Os relacionamentos abusivos podem acontecer em diferentes contextos, seja na família, nas amizades, mas hoje o foco vai ser os relacionamentos amorosos. As características principais são a pessoa sentir-se culpada, constantemente haver um questionamento da inteligência ou das capacidades, chantagem emocional, manipulação, abuso de poder, limitação de espaço, onde a pessoa pode ou não pode ir, com quem ela pode estar, quais roupas pode usar, repressão e outras inúmeras privações.

De quais formas o relacionamento abusivo pode se apresentar?

De diferentes formas, mas é muito importante prestar a atenção no que aquela relação provoca nas pessoas ao redor. Porque geralmente as pessoas próximas ao casal questionam algumas palavras utilizadas ou a forma como é dito. Então ele pode ser, por vezes, com um contato violento, mas nem sempre uma violência escrachada. Aquele contato onde tem um empurrãozinho, um beliscãozinho, também no formato emocional e psicológico, quando há ridicularização da pessoa, quando um dos dois se sente muito culpado pela forma como age, pelas palavras que utiliza, pelo seus comportamentos.

Muitas vezes a vítima não percebe o abuso. Como é possível sair de um relacionamento abusivo?

Com muito autoconhecimento, muita consciência, tomando contato com esse abuso, com essa violência, com essas limitações, com esses desrespeitos que a mulher ou o homem sofrem. Enquanto psicóloga, eu diria que é primordial uma boa psicoterapia para que a pessoa consiga investir no seu autoconhecimento. E também que possa avaliar como era antes do relacionamento. Se ela tinha rede social, se conversava, se tinha amizades, se sentia melhor com ela, mais feliz.

Como amigos e familiares podem ajudar?

A ajuda para os casais que se percebe um relacionamento abusivo ao mesmo tempo que precisamos falar, dizer “olha, não acho esse relacionamento legal. Eu jamais deixaria que tratassem assim, toma uma atitude”, também precisamos disponibilizar muita informação para a pessoa que está sendo abusada nesse relacionamento. Seja por materiais nas redes sociais, seja por reportagem, ou por filmes.

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