QUANDO OS BAILES DURAVAM TRÊS DIAS

Nos tempos do Kerb

QUANDO OS BAILES DURAVAM TRÊS DIAS

Tradição herdada dos imigrantes alemães, os Kerbs mobilizavam as famílias no interior. As atividades marcavam a fundação das comunidades com comidas e danças típicas trazidas com a colonização. Mesmo com algumas modificações, os bailes ainda fazem parte da cultura regional e deixaram marcas em quem viveu a época

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QUANDO OS BAILES DURAVAM TRÊS DIAS
Ulla Troller Wink, 75 anos, era criança quando participou do primeiro Kerb. Salão da família era um dos principais espaços para as confraternizações no Vale / Crédito: Felipe Neitzke
Vale do Taquari
Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

As folhas verdes de palmeiras enfeitavam o grande salão. As mesas compridas ficavam a um canto e o chão era cuidadosamente lustrado para receber os pés-de-valsa. Uma guirlanda também fazia parte da decoração com as cores da Alemanha e era onde ficavam penduradas as famosas gildas. As moças, enfileiradas, esperavam o convite dos rapazes para dançar e, em pares, a comunidade enchia o salão. Quando o som do xote carreirinha, do samba-canção ou da valsa era tocado pela orquestra, tinha início a tradicional festa de Kerb, trazida à região na década de 1820.

Com duração de três dias, a festividade alemã marcava o aniversário de uma comunidade, e reunia familiares de diferentes picadas para celebrar. O evento iniciava nos domingos com uma celebração religiosa e seguia com o baile. As segundas e terças-feiras também eram sagradas. Um dos locais mais conhecidos por seus bailes de Kerb na região era o Salão Troller, em Forquetinha, onde a família de Benno e Ella Troller cresceu.

Uma filha do casal, Ulla Troller Wink, 75, era ainda criança quando participou da festividade pela primeira vez. Como o salão era da família, ajudava no preparo da galinhada, cuca e linguiça, e costumava lustrar o chão com parafina. Ela derretia o material em uma frigideira, e espalhava com um pedaço de palha pelo salão. Os proprietários dos espaços eram os responsáveis pela organização, e o pavilhão ficava impecável para a festa do dia seguinte.

Na estrutura, além do salão de baile e da própria residência da família, havia uma casa de comércio. “Tínhamos montes de quartos. Quando tinha festa, a gente tinha que tirar tudo do salão e chavear os cômodos”, lembra a aposentada.

Perto das 16h do dia de Kerb, a “gildinha”, uma garrafa de cerveja enfeitada com papel crepom como uma boneca, era escondida no terreno. Depois do culto, a comunidade ia procurar pelos potreiros e valetas. Quem encontrasse, pagava meia dúzia de cervejas para os músicos ou outros convidados. Outras vezes aquela boneca era posta no alto de um poste para os homens escalarem, ou presas nas guirlandas, no meio do salão. Quando a festividade do primeiro dia acabava, a família varria o local e já se preparava para próximo baile.

Por anos o Salão Troller foi palco de diversas festas da região. Mas em 1997, já sem atividade, a estrutura do pavilhão foi transferida para o Parque Histórico de Lajeado. Hoje é a sede do Centro de Cultura Alemã de Lajeado, e já foi cenário de eventos gastronômicos, culturais, ensaios de grupos de danças e reuniões.


Encontro nas danças

As lembranças dos tempos áureos do Kerb também são contadas pelo casal Wolfgang e Karin Collischonn. Ela cresceu na comunidade de Boa Esperança, em Cruzeiro do Sul, e lembra que, por vezes, eram percorridos mais de seis quilômetros em terra de barro entre a igreja onde era celebrada a missa ou culto no domingo, até o salão de baile.

Por isso era comum as mulheres andarem descalças com os sapatos nas mãos. Ao chegarem no pavilhão, faziam fila para limpar os pés em uma gamela e calçavam os sapatos outra vez. Com eles dançavam a noite toda. Na hora de ir para a casa, os pés eram novamente descalços. Em algumas noites, elas também voltavam acompanhadas.

Casal Wolfgang e Karin Collischonn relembram as histórias das antigas festas de Kerb / Crédito: Bibiana Faleiro

“Quando um rapaz e uma moça se interessavam durante a dança, ele oferecia uma gasosa e eles sentavam juntos à mesa. No fim do baile, o rapaz também acompanhava a moça em casa”, conta Karin. Os homens costumavam perguntar, em alemão, “Vai comigo até a mesa?”. Isso era sinal de que as danças tinham funcionado e as famílias já tratavam de comentar.

No paletó dos homens, uma fita colorida presa com alfinete marcava quem havia pago pela entrada, e as confusões eram evitadas durante as celebrações. “Tinha um senhor que era mestre-sala e era encarregado pelo proprietário do salão a dar ordem em todos os sentidos. Nada de brigas. Se começasse uma discussão aquele cara vinha separar”, conta Collischonn.

Aos 16 anos, ele se mudou para Lajeado, onde conheceu a esposa. Em uma tarde de piquenique do grupo de jovens, combinaram de ir juntos ao baile naquela noite. “Lá nós vimos que gostávamos de dançar um com o outro. A gente sempre se acertou”, lembra o casal.

Os velhos xotes e rancheiras estavam sempre na ponta do pé. “Como o xote de carreirinha. A gente dançava: 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7…”, relata Karin.

A festa também era transmitida pela rádio. Assim, quem ficava em casa podia acompanhar o que ocorria no baile. Até mesmo as crianças participavam das celebrações, mas ficavam em um quarto separado e eram postos para dormir em uma grande cama de casal, enquanto a família valsava pelo salão.


Kerb à moda antiga

Os preparativos começavam um dia antes das celebrações. As pessoas limpavam a casa, o pátio e abasteciam as dispensas. Os suínos e galinhas também eram selecionados para servir no almoço. Depois da refeição, era hora da sobremesa, e as cucas e tortas não podiam faltar. Era tudo feito de forma voluntária. Um verdadeiro encontro de famílias.

“Como o Kerb de outras localidades se dava em data diversa, havia a visita de pessoas e parentes de outras picadas, por isso a festa durava três dias”, afirma o pesquisador Airton Engster dos Santos. Cada dia o assado de porco, a galinha recheada e as massas caseiras saiam fumegantes do forno e do fogão para a mesa do almoço. As refeições eram acompanhadas pelo chopp, cerveja ou pela gasosa de framboesa.

Na tarde de domingo, após visitas nas plantações e instalações de animais do anfitrião, os homens se reuniam para jogar schafskopf, jogo de cartas tradicional alemão.

As mulheres falavam das novidades das picadas, enquanto a dona da casa preparava o café da tarde. Os jovens já pensavam no baile da noite. Nesse período, as senhoras e moças confeccionavam o seu único vestido novo do ano. E os bailes se repetiam nos dias seguintes.

 

Representação das festas de Kerb pelo grupo de danças folclóricas de Estrela / Crédito: Arquivo Pessoal


Ao som da Polonese

Ao final das celebrações religiosas, a comunidade era conduzida com música alegre até o salão. Uma das danças que abria a festa era coreografada As pessoas andavam em filas pelo pavilhão e convidavam quem estava sentado às mesas para o centro do cômodo. O casal mais antigo ou de mais tradição puxava o grupo, e assim iniciava a Polonese.

“Outras danças que os grupos folclóricos apresentavam quase como regra no Kerb era o Herr Schmidt, o Siebenschritt, e algumas valsas específicas”, recorda o instrutor de danças folclóricas de Estrela, Andréas Hamster. Outros ritmos característicos de Kerb são Isabella, Suzana, Mariechenwalser e Trink-Brüderlein-Trink.

Mais tarde os corais também passaram a fazer parte das festividades e das celebrações religiosas. O regente de coros e professor Ariberto Magedanz, explica que o Kerb e os corais são duas tradições germânicas independentes, mas que se relacionam. “Os corais tem um repertório muito variado, participam de festas, participam de missas e celebrações. Nos festejos de Kerb os corais também estavam sempre presentes”, destaca.


O que restou da tradição

No início, as festas eram frequentadas principalmente por agricultores, camponeses e suas famílias. Mas quando surgiram as primeiras indústrias, as pessoas começaram a trabalhar às segundas de manhã. O baile, então, foi transferido para sábados e domingos. Hoje, o mais comum é serem celebrados em apenas uma noite.

Uma das comunidades que ainda mantém o costume do Kerb é Poço das Antas, onde a festa ganhou grande proporções. Algumas celebrações chegaram a reunir 5 mil pessoas de diversos lugares do estado. Não é à toa que o município é conhecido como a terra do Kerb.

O presidente da Associação Sociocultural Poço das Antas (Sascpa), Pedro Steffen ajudou a construir, ao lado do pai, o salão onde ocorrem os bailes da comunidade católica. Faz 40 anos que está envolvido com as festas marcadas para domingo e terça-feira, e hoje está na organização.

“São 29, 30 anos de tradição. Nos últimos bailes, cerca de 100 pessoas da comunidade se ofereceram para ajudar”, afirma. Muitas vezes a rua em frente à igreja era fechada para receber os visitantes, e inúmeras bandeiras coloriam o ambiente para a festividade.

Esse costume também é visto em Colinas. Mas, na localidade, a decoração serve para mostrar quem fez parte do grupo de comendadores na organização da festa. Apesar de ser feito em apenas um dia, algumas tradições do famoso baile permaneceram, como as comidas típicas e algumas danças.

“Em virtude da modernização, da facilidade de comunicação entre as famílias, não se festeja mais os três dias. A Igreja fica enfeitada, tem culto ou missa, a banda toca e é celebrado o aniversário da comunidade, mas muita coisa mudou”, diz Edelbert Jasper, que fez parte do grupo de danças de Colinas, Morgenstern.

 

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