Lembranças de quem viu a maior cheia da história

80 ANOS DEPOIS

Lembranças de quem viu a maior cheia da história

A chuva leve que se intensificou com o passar dos dias, o avanço rápido das águas e os rastros de destruição. Moradores do Vale relembram a maior cheia da história gaúcha, registrada entre abril e maio de 1941

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Lembranças de quem viu a maior cheia da história
Com nove anos na época, Dagmar recorda trauma causado pela cheia em Lajeado. "Ninguém imaginava que seria tão grande" CRÉDITOS: Bibiana Faleiro
Vale do Taquari
Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

Choveu no estado por cerca de 20 dias seguidos entre abril e maio de 1941. A data exata em que as pancadas iniciaram é imprecisa. Em suas pesquisas, o historiador José Alfredo Schierholt aponta que a água caía desde 13 de abril. Já o jornal O Taquaryense (única imprensa do Vale na época) registrava chuvas desde o dia 19.

O certo é que as precipitações começaram fracas. A situação mudou em 22 de abril, quando choveu mais de 120mm em apenas um dia. “O que surpreendeu foi a repentina subida do rio Taquari. Em poucas horas começou a sair rapidamente de seu curso natural e transbordar”, lembra Clocy Schroeder Johann, 94.

Na época com 15 anos, ela morava em Mariante, distrito de Venâncio Aires. Se recorda das águas carregando objetos e do pai acudindo desalojados. “As pessoas estavam muito apavoradas, gritavam por socorro à medida em que o rio ia subindo e levando suas casas”, conta.

A exemplo do Taquari, as principais bacias hidrográficas gaúchas transbordaram em 1941. Em Porto Alegre, o auge do Guaíba foi registrado no dia 8 de maio, quando o nível do rio passou dos 4,7 metros no cais do porto (normal é 1,2 metros).

Até hoje, o dia é conhecido como “quinta-feira negra”.

Cerca de 25 mil quilômetros quadrados do RS foram inundados (o que representa 9% do território gaúcho). Dezenas de cidades ficaram isoladas, faltaram subsídios básicos como alimentos e praticamente todos os meios de transporte terrestres ou aquáticos pararam.

“Pavorosa” enchente do Rio Taquari

“Os habitantes desta cidade assistiram, com a atual cheia do rio Taquari, um espetáculo doloroso que jamais se apagará da memória dos que tiveram a ventura ou desventura de assisti-lo”, afirmava O Taquaryense em 10 de maio de 1941.

Na edição seguinte, em 17 de maio, o semanário trazia no título a expressão “pavorosa” ao classificar os prejuízos com a invasão das águas. Nas margens do rio, as famosas navegações Arnt e Aliança tiveram suas estruturas parcialmente danificadas e ficaram por dias sem operar. Mais de 4 mil pessoas foram desabrigadas e os prejuízos em Taquari chegaram a “um conto de réis” (cerca de R$ 120 mil).

Lajeado teria prejuízo ainda maior, segundo pesquisa de Schierholt. O rio alcançou 28,13 metros, 15 a mais que o normal, no dia 8 de maio. Pontos como a Praça Marechal Floriano e a extinta Casa Born foram atingidos. Na rua Borges de Medeiros, a água chegou próximo de onde hoje estaria localizada a Secretaria da Paróquia de Santo Inácio.

Prefeito lajeadense na época, João Frederico Schaan abriu um crédito de quase “seis contos de réis” (cerca de R$ 740 mil) para as despesas com reparações.

Na longínqua década de 40, o Vale do Taquari era composto apenas pelos municípios de Estrela, Encantado e Arroio do Meio. Dados sobre perdas nessas cidades são mais raros e a dimensão da enchente de 41 fica mesmo na memória das pessoas.

Embora os prejuízos econômicos tenham sido incalculáveis, não há registro de mortes no Vale em função da violência das águas. Sem defesa civil na época, salvamentos foram feitos por populares, pescadores e empresas de navegação.

Maiores enchentes

1° Maio de 1941 – 29,92 metros

2ª Abril de 1956 – 28,86 metros

3ª Janeiro de 1946 – 27,40 metros

4° julho de 2020 – 27,39 metros

5ª Setembro de 1954 – 27,35 metros

6ª Outubro de 2001 – 26,95 metros

7ª Julho de 2011 – 26,85 metros

8ª Outubro de 2008 – 26,65 metros

9ª Junho de 1959 – 26,63 metros

10ª Julho de 1940 e agosto de 1965 – 26,40 metros

Obs: Os dados são do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da engenheira ambiental Sofia Moraes


Lajeado

Já chovia há semanas, e uma “pequena cheia” assustava os moradores de Lajeado. A professora aposentada Dagmar Jaeger Scheid, 88, era criança na época, e lembra de quando o rio começou a inundar a casa da família. A água atingiu primeiro os fundos e chegou a subir um metro dentro da residência que ficava na rua Marechal Deodoro.

“Depois daquela enchentezinha, começou a chover e a chover, por umas duas semanas. De noite trovejava. A enchente de 41 veio muito rápido, e ninguém imaginava que seria tão grande, eu tinha muito medo”, lembra.

Quando a água atingiu a esquina da rua Marechal Deodoro com a João Abott, Dagmar disse para a mãe que queria sair da casa. Era naquela esquina que ficava a fábrica de móveis do pai.

Enquanto a família se abrigava na residência da avó, na Rua Borges de Medeiros, os funcionários da fábrica trabalhavam para erguer os móveis em tábuas dispostas em cavaletes. O mesmo foi feito na casa da família. Mas a enchente foi maior do que o esperado e, mais tarde, encontraram os móveis há algumas quadras de onde ficava a indústria.

Na esquina da rua seguinte de onde moravam, na Silva Jardim, ficava uma usina que fornecia energia elétrica para Lajeado, que também foi inundada e deixou a cidade no escuro. A família ficou meses na casa da avó, à luz de velas e lampiões.

Além da escuridão que fazia Lajeado silenciosa, principalmente durante a noite, os moradores também ficaram sem água potável. A maioria das casas possuía uma cisterna que, depois da cheia, ficou suja e coberta por barro.

Quando a água baixou, as famílias iniciaram um processo de reconstrução. “Muita gente chorava, porque perderam quase tudo”, lembra. Depois de alguns meses, a família de Dagmar voltou a morar na casa por muitos anos e, quando o pai construiu a nova residência no terreno, seguiu a medida do nível da água da enchente de 41. Aterrou o terreno e fez a casa na altura do que era a janela.

Depois do susto, sempre que chovia, a lajeadense se preocupava. “Era só chover que eu já ficava com medo da enchente”, conta.

Na pesquisa do professor José Alfredo Schierholt, as chuvas iniciaram em 13 de abril e o Rio Taquari, normalmente com 13 metros, alcançou 28,13 metros, no dia 8 de maio. As águas cobriram a Rua Silva Jardim, até onde estão localizados hoje os prédios dos antigos Correios e Fórum.


Taquari

Mais de quatro mil pessoas estariam em situação de miséria após a enchente. Os vapores e “gasolinas”, como eram chamados os barcos pequenos, das Navegação Arnt e Aliança e outros barcos particulares foram requisitados pelo governo para auxiliar as famílias.

Não só os moradores ribeirinhos sofreram com a ação das águas. No interior do município, em pontos distantes de mais de uma légua do rio, as águas destruíram boa parte das construções, além de atingir plantações e animais. A enchente também destruiu as residências das famílias na área central. O Taquaryense noticiou: “Levados pela correnteza, eram vistos passarem pelo porto casas, animais mortos, além de grande quantidade de abóboras, lenhas, madeiras, tábuas, etc”.

A taquariense Flávia Therezinha Saraiva Dias, 89, era criança na época e lembra que a chamada zona da praia, na Avenida Getúlio Vargas, foi tomada pelo rio. Ela morava no centro e a casa ficou fora do perigo da enchente. Mesmo assim, depois do almoço, ela ia com a família ver a cheia. Os tios-avós se mudaram para a casa dela e a comunidade se mobilizou para ajudar os desabrigados.

“Nós, que éramos crianças, não entendíamos a extensão e os prejuízos da enchente. Não entendíamos o quanto era assustador. O povo se aglomerava na Praça D. Pedro II pra ver e levávamos também alimentos e roupas para as famílias”, lembra.

Ela conta que um dos lugares onde as pessoas ficaram abrigadas foi o Colégio Pereira Coruja. Os médicos também se mobilizaram para tratar os atingidos pela enchente e vaciná-los contra tifo e o município teve ajuda da comunidade com doações financeiras para diminuir as perdas da enxurrada. Os valores passaram de um conto de réis (R$ 120 mil) até notícias do dia 24 de maio daquele ano.


Arroio do Meio

A cheia de 1941 alcançou os 33,91 metros no balneário municipal de Arroio do Meio. Foram 76 centímetros a mais que a enchente de 2020, que deixou mais de 3,5 mil pessoas desabrigadas no município.

Madalena Noêmia Marchini, 94, presenciou os dois fenômenos e confirma que o da década de 40 foi superior. “A água subiu muito rápido e com muita violência. Tivemos de ser resgatados de caíque”, comenta a moradora do Navegantes que na época tinha 15 anos.

Passar pelas águas em meio às residências parcialmente submersas é lembrado com temor. Madalena recorda que um dos barqueiros ameaçava virar a balsa para assustar ela e os quatro irmãos. “Se o barco vira, todo mundo morre”, acredita.

Foram dias até a água sair das ruas. Nesse período, a família se abrigou na casa do prefeito. Mesmo com a violência das águas, a arroio-meense recorda que apenas uma casa foi arrancada do chão e nenhuma pessoa morreu.

No livro, “Arroio do Meio entre Rios e Povos” há imagens das águas na proximidade do que hoje seria a esquina das ruas Maurício Cardoso e João Carlos Machado, próximo da Lojas Lebes.


Encantado

As chuvas teriam caídoem Encantado de 1° a 5 de maio, conforme o livro “O município de Encantado Através do Tempo”, escrito por Lauro Nelson Fornari Thomé.

No livro “A História de Encantado em Fotografias”, Gino Ferri traz registros fotográficos da enchente na extinta Indústria de Produtos Suínos Costi S/A, na Barra do Jacaré (sede atual da Quinta do Vale).

Conforme o historiador, os porcos que estavam na indústria tiveram de ser soltos para não morrerem afogados. A enchente também entrou no primeiro andar do Hotel Costi, administrado na época pela família Martini.

Outro ponto atingido foram as residências dos operários. “Depois disso, as casas foram tiradas da parte de baixo e colocadas em um terreno acima”, relembra Luiz Antônio Radaelli, 81 anos. Morando no bairro desde o nascimento, destaca que as histórias da cheia de 1941 se perderam com o tempo. “No passado havia até as marcas em pedras”, comenta.

Nas medições registradas pela administração municipal de Encantado, a cheia de 1941 alcançou 19,48 metros, sendo considerada a quarta maior da história no município. Fica atrás da enchente de 2010 (19,50m), 2001 (19,58m) e 2020 (20,27m).


Estrela

FOTOS AEPAN ONG

Segundo informações do pesquisador Airton Engster dos Santos, Estrela era essencialmente rural em 1941. Naquele ano, além das cidades, vilas e povoados ribeirinhos, o maior dano da enchente foi para navegação fluvial, que ficou seriamente comprometida no Rio Taquari entre Estrela e Muçum. As margens mais alargadas também fizeram com que o rio ficasse mais raso.

O morador de Estrela Rudolfo Maria Rath conta que a cheia de maio de 1941 trouxe danos imensuráveis para agricultura e pecuária em Estrela, já que mais de 80% da população residia em área rural do município.

As estradas do interior de chão batido foram destruídas com as enxurradas e as pontes que eram de madeira foram levadas pela força das águas. As praias e as ilhas desapareceram. Segundo o historiador Gino Ferri, a enchente de 1941 apresentava um quadro de grandeza selvagem e desolador, atingindo grande número de moradores ribeirinhos às margens do Rio Taquari, especialmente nas periferias das cidades.

Segundo Santos, Estrela não possuía redes de energia elétrica na época. As casas no interior utilizavam lampiões a querosene, motivo pelo qual não há registro de quedas de postes e falta de energia elétrica. “A comunidade também utilizava água de poço artesiano e cisternas, motivo pelo qual acreditamos não haver relatos de problemas com abastecimento durante o período da enchente”, destaca.

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