Celular de criança com conteúdo  de adulto

Lajeado

Celular de criança com conteúdo de adulto

Em Lajeado, alunos com nove anos já veem pornografia. Pais e educadores têm o desafio de evitar o acesso precoce a conteúdos de teor erótico, o que pode comprometer o desenvolvimento infantil

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Celular de criança com conteúdo  de adulto

Se até alguns anos a preocupação dos pais era evitar que as crianças percorressem os olhos pelos títulos da prateleira de filmes adultos na locadora, agora a missão é filtrar o que chega na telinha do celular e afins – a qualquer momento e em qualquer lugar. Inclusive, na escola.
 
Não existem muitos dados acerca dessa realidade, afinal, a atenção de autoridades em segurança cibernética está mais voltada a crianças enquanto alvos e não enquanto consumidores de pornografia. Contudo, alguns países atentam para essa questão. Segundo apurou a Sociedade Irlandesa para a Prevenção da Crueldade contra Crianças, a partir dos 6 anos, menores já acessam conteúdos adultos.
 
Foi uma surpresa desagradável, seguida de muita preocupação, quando Carla (nome usado nessa matéria para uma mãe que prefere não se identificar) soube que sua filha de apenas 9 anos estava acessando conteúdos pornográficos. A descoberta aconteceu há cerca de duas semanas, e resulta de uma nova forma de distração que tem se espalhado pelo recreio de uma instituição de ensino de Lajeado.
 
“Eram sites que nem eu conheço, com coisas pesadas até para adultos”, comenta. A mulher diz que a menina era proibida de levar celular para a escola, apesar de a instituição não se opor ao uso. Além disso, em casa, a família tem duas linhas Wi-Fi, sendo que as crianças têm acesso a apenas uma.
 
Mesmo com esses cuidados, frequentemente a mãe vasculha o histórico do celular da menina. Foi nessa ocasião que ela notou o acesso a sites impróprios. Nos dias anteriores à descoberta, ela percebeu que a filha estava irritadiça. “Quando eu disse para ela que a gente tinha que conversar, já começou a chorar muito.”
 
Segundo a criança contou à mãe, tudo começou com uma coleguinha que, por sua vez, teria sido influenciada por uma vizinha, estudante de outra escola. “Ela diz que tem um grupinho na turma dela e outros em outras turmas, e há meninos também.” A mulher diz ter estranhado que a filha aceitasse ver esse tipo de vídeo, uma vez que a guria sempre foi mais reservada e se constrangia mesmo diante de cenas de beijos na TV.
 
Após conversar com a garota, a mãe a orientou a rejeitar esse tipo de conteúdo, mesmo que isso signifique ter que brincar com outras crianças, e já marcou uma reunião com a direção da escola para tratar do assunto. “Eu faço uma relação com a questão das drogas: a gente pensa que os filhos estão preparados para dizer não, mas às vezes não estão.”
 

Educadores alertas

A psicopedagoga Ana Beatriz Reckziegel Marques, 52, passou por situação semelhante com um dos filhos, no ano passado, quando ele tinha 9 anos. Os colegas estavam falando sobre um vídeo, o que despertou a atenção de quem ainda não tinha assistido. A professora da turma, porém, escutou a conversa e falou com Ana quando ela foi buscar o menino no turno extracurricular.
 
Em casa, a mãe conseguiu verificar o conteúdo e evitar que o filho assistisse. Ela ainda conversou sobre o assunto e explicou ao pequeno que era um vídeo impróprio.  “A escola foi muito assertiva. Isso é algo que está acontecendo e temos que estar atentos, sejam professores, sejam pais”, reforça.
 
Enquanto profissional, ela analisa que a criança vê esse tipo de conteúdo como uma agressão e não como ato afetivo. Em resposta, torna-se agressiva também. Na sala de aula, o resultado pode ser: dificuldade de atenção, atitudes desafiadoras e postura ansiosa.
 
“Na infância, ocorre a fase da latência, onde a sexualidade fica amortizada; é uma fase de desenvolvimento neuronal, importante e forte. Toda a infância deveria estar focada mais na questão da aprendizagem”, explica.
Segundo a psicopedagoga, os educadores, ao perceberem esses sinais, devem sempre compartilhar a preocupação com os pais e, quando a escola conta com psicólogos e rede de apoio, solicitar ajuda. Ela ainda destaca que muitos programas de TV têm apelos eróticos, e são acessados com facilidade no ambiente familiar. “Isso gera um estereótipo de que quem conhece essas coisas é ‘grande’, é ‘bom’”, comenta.
 

Cuidado com aplicativos

Nem mesmo as lojas oficiais estão livres de códigos maliciosos que são embutidos em falsos aplicativos. Segundo a empresa Avast, no início de fevereiro foram identificados e removidos mais de uma dezena de aplicativos infectados na Google Play.
O grande chamariz são programas usados para editar imagens, com recursos de embelezamento ou filtros engraçados.
 
Além de conterem links que desviam o usuário para sites que captam dados pessoais e financeiros e de roubarem as fotos editadas, esses aplicativos, muitas vezes, exibem anúncios pornográficos mesmo quando estavam fechados ou quando o aparelho era desbloqueado. Após a instalação, o ícone do APP sumia, dificultando a remoção por parte de usuários leigos.
 
 

 “É importante falar abertamente, em cima do que a criança viu”

2019_03_02_ Gesiele Lordes_psicologa Julia_pornografia infantilNem sempre é possível evitar que as crianças tenham acesso a conteúdo adulto. Quando isso ocorre, os pais precisam conversar com os filhos, como orienta a psicóloga Julia Fensterseifer Isse.

Como a pornografia interfere no desenvolvimento da criança?
A pornografia é um tema polêmico, que envolve muitos olhares, mas em nenhum momento é saudável para uma criança. A criança que tem acesso a esse tipo de conteúdo muito cedo acaba pulando etapas. Esse é um tema que envolve muitos tabus, então não é muito discutido, mas a gente sabe que tem acontecido, principalmente porque as crianças têm acesso a celulares, tablets e computadores muito cedo. Os pais me perguntam, nos atendimentos, como controlar o que a criança está acessando. Oriento que sentem com o filho, olhe o que ele está olhando e converse sobre isso.
 
Sempre deixar aberto para a criança falar sobre o que está assistindo e sobre o que está conversando com os colegas. Às vezes, a criança não tem acesso no seu celular, mas o colega tem e acaba mostrando alguma coisa. Então, os pais não sabem, porque não está no celular da criança, mas se conversarem, vão saber. Não pode ser uma proibição falar sobre isso. A sexualidade vai se desenvolvendo ao longo da vida. Dependendo do nível do que for visto, pode gerar problemas na fase da adolescência em relação à sexualidade, e até na vida adulta, gerando alguns traumas.
 
O comportamento muda nesses casos?
A mudança de comportamento acontece, sim, quando as crianças estão vendo algo que não é do convívio delas. Os pais conhecem seus filhos. E não é um dia que o filho estava mais irritado ou um dia que ele se trancou no quarto: é um dia depois do outro, semanas. Algumas crianças se fecham e não querem falar. Os pais precisam conversar e entender o que está acontecendo. Alguns conseguem falar abertamente sobre esse tipo de assunto com os filhos, outros não conseguem, e é aí que a gente orienta que se procure ajuda profissional.
 
Quando a criança tem acesso à pornografia e os pais conversam sobre isso, acabam antecipando uma questão da adolescência. Como deve ser essa conversa na infância?
Esse assunto é sempre difícil, até pela nossa sociedade, mas a crianças sempre tem dúvidas. Oriento que os pais perguntem o que ela está entendendo, o que ela imagina que seja aquilo. Daí a gente tem noção do quanto ela já sabe ou a que tipo de informação ela teve acesso. E não dá para fingir que não aconteceu; fingir que nada aconteceu é pior. Também não dá para conversar como se fosse outro adulto, porque ela não vai ter o entendimento. Os pais precisam explicar que esse tipo de coisas só acontecem entre adultos e que quando ela for adulta, vai entender – mas sempre deixando a criança perguntar. É importante falar abertamente, em cima daquilo que ela viu ou sabe, sempre de uma forma sutil. Às vezes, os pais explicam além daquilo que a criança viu, e acabam antecipando outras coisas.
 
Até pouco tempo, pornografia na escola era ter revista de mulheres peladas na mochila. O impacto do vídeo causa mais danos do que o de uma foto?
Sim. Se a criança vê a foto, ela cria uma fantasia em cima daquilo que ela vê; ela não tem contato com a realidade. Uma criança que tem acesso a um vídeo não tem o que fantasiar, pois ela está em contato com a realidade, e a realidade é sempre mais forte, pois a imaginação da criança não chega a tanto.
O vídeo não dá margem para a criança imaginar. E nem precisamos falar só de vídeos pornográficos, podemos falar das novelas, que hoje estão muito erotizadas. É um nível de pornografia de acesso mais livre, como o funk, que também é muito erotizado. E a gente não se dá conta porque olhar TV e escutar música são coisas do dia a dia. Mesmo sendo cenas mais sutis, a criança acaba fantasiando. Às vezes, a TV está ligada e os pais pensam que a criança não vai prestar atenção porque está brincando no chão da sala, por exemplo. Só que ele está escutando e está vendo aquilo.
 

GESIELE LORDES – gesiele@jornalahora.inf.br

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