O perigo quando se tem medo da noite

Opinião

Gilberto Soares

Gilberto Soares

Coluna aborda temas do cotidiano, política e economia. Escreve duas vezes por mês, sempre aos sábados.

O perigo quando se tem medo da noite

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a_hora_ilustração 30-06-17
“Maior é o perigo onde maior é o medo” – Caio Salústio Crispo, 86. a..C., poeta e escritor
Temos medo do breu da noite. As sombras ocultas despertam o traço pueril do adulto. “Tem algo babando embaixo da cama”, desesperava-se Calvin, personagem inesquecível dos quadrinhos desenhados por Will Waterson. Com propriedade e arte, aquele menino Calvin traduzia os temores da criança que o todo o adulto carrega em si.
A vida noturna sempre carregou um certo glamour, embora fora das metrópoles fosse jantar e dormir. Na década de 1920, garotas conhecidas como melindrosas e o jazz compuseram a combinação de imagem e som das capitais.
COM O TEMPO – A música é inseparável da boemia. Em cidades com o porte de Bagé, os anos 1950, 60 e 70 foram embalados pelos bailes de salão, carnavais de rua, festas juninas, reuniões dançantes e festivais. Sair à tardinha e retornar pela madrugada era o programa cumprido com alegria pelos jovens. Atividades juvenis que não assombravam os pais tanto quanto a irreverência do rock and roll. Pavor só nas linhas de um livro de Edgar Alan Poe, contos de galpão ou em roteiros dos filmes de terror da Hammer. Ou….
…OU NA CAMPANHA – Esta pequena história poderia ter este título: O jovem recenseador e os mistérios da noite da campanha.
E foi assim. Em 1975, passei no concurso do IBGE. Escolhi a região do Espantoso – Bagé, na época – e fui à luta. No primeiro dia, às 5h30min, desci do ônibus na BR-153, logo após a arroio Valente. Frio de lascar, eu, minha solidão e a pastinha do IBGE. O amanhecer demorou-se à exasperação. Quase sem enxergar, restava ir de um lado para outro naquele naco de acostamento.
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Ao clarear, avancei para uma pequena propriedade até ser barrado por uma matilha ameaçadora na porteira. Salvo por um senhor sereno – e por um café revigorante –, preenchi o primeiro questionário. A seguir, foram cerca de 4 horas de coxilhas até o Haras Mondesir. Depois, outras 4 horas até uma estância na estrada do Butica. Ao entardecer, entrevistava uma estancieira idosa e gentil. Após a pesquisa, recusei o convite para ficar e botei o pé na estrada. Precisava voltar à casa e à companhia de minha avó, mesmo que chegasse ao amanhecer. Tomei rumo em direção ao clarão indicativo do centro da cidade. Logo a estância ficou para trás e os grilos e corujas distinguiram-se no entrevero de sons. Esses e tantos outros ruídos misteriosos dispararam a imaginação do rapaz apaixonado por Simões Lopes Neto, filmes de terror e ficção-científica. E o cisma iniciou-se com a algaravia que disparou o alarma do medo. Olhei para trás e deparei-me com um faixo desorientado de luz – para baixo, para o céu. E o pior: em minha direção. Sem atinar o que fosse, apertei o passo, a pasta e rezei. Preso a um tempo que não passava e a uma estrada interminável, senti a luz aproximar-se. Perto, até o pesadelo romper o açoite do vento nos ouvidos e apresentar-se compassado como um… trator. Refeito do susto, aceitei a gentileza do tratorista que me poupou outras horas de caminhada.
OUTRAS NOITES – Nas décadas de 1970/80, a noite da Azenha e de parte da Cidade Baixa, em Porto Alegre, misturava música, luxúria e prostituição. Os jovens encontravam-se no Bom Fim e a fina flor desfilava na Independência. De quando em quando, uma batida da Brigada Militar ou da Polícia do Exército sacudia a contravenção. Havia espetáculos madrugada a dentro – o cine Avenida mantinha uma sessão de filmes cults à meia-noite. Caminhava-se, e muito, em Porto Alegre.
VIRA-VIROU – Os dias são de grades nas residências e aprisionamento dos cidadãos. A violência disseminou-se e desconhece a inocência das pequenas comunidades. Até ir à UPA de Lajeado tornou-se arriscado. Há o risco de encontrar criminosos que liberam comparsas, ameaçam ou tomam a vidas das pessoas. Os bandos buscam reconhecimento com pichações de paredes de bairros e paradas de ônibus.
Civilização também é sair a hora que se quer e ir aonde se deseja. Nestes novos tempos, a noite avança dentro de cada um e pode fazer do medo o maior perigo.

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