Entre o luto, a destruição e os traumas da enchente

Mortos e desaparecidos

Entre o luto, a destruição e os traumas da enchente

Tragédia soma 36 mortes, mais de 30 desaparecidos e 26,2 mil pessoas desalojadas no Vale

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Entre o luto, a destruição e os traumas da enchente
Resgates continuam sendo feitos em localidades onde houve desmoronamentos ou com registros de pessoas desaparecidas / Crédito: Divulgação
Vale do Taquari

Já chovia desde o sábado, 27, em grande volume. Mas as águas do rio Taquari começaram a subir na segunda-feira, 29. O medo de uma nova enchente proporcional ou maior do que a que a comunidade viveu em 2023 era temida. E um novo fator, os desmoronamentos, se uniram aos perigos causados pelos temporais.

O Taquari atingiu o pico no dia 2 de maio, às 13h30min, com 33,35 metros. E, desde a enchente de 2020, pelo menos, além da evacuação das casas, as mortes também fizeram parte do retrato da tragédia. Em setembro do ano passado, foram 54 vidas perdidas pelas águas, e quatro pessoas desaparecidas. Desta vez, desde o início de maio, o Vale contabiliza 36 mortos e 32 desaparecidos.

A primeira morte foi em Paverama, quando um veículo com dois passageiros, Delmar Waldomiro Sandres e Nelson Schaeffer, foi arrastado pela enxurrada no fim da tarde de segunda-feira, 29, na localidade de Morro Azul.

Em Forquetinha, o casal de idosos Adanário Fuchs, 75, e Celi Fuchs, 74, tiveram a residência atingida pela cheia em Barra do Forquetinha e também morreram, vítimas dos temporais. Com o passar dos dias, mais óbitos foram registrados em Lajeado, Cruzeiro do Sul, Venâncio Aires, Capitão, Travesseiro e Putinga. Os desmoronamentos de terra ainda vitimaram 10 pessoas em Roca Sales, além de duas em Marques de Souza e uma em Encantado, identificada como Josaine Machado.

 

Corpos são encaminhados para o Departamento Médico Legal de Lajeado. Registros de pessoas desaparecidas, além de serem feitos na Polícia Civil, também devem ser feitos no DML para possível identificação das vítimas / Crédito: Felipe Neitzke

A pior das perdas

Familiares e amigos se despediram de Josaine, de 46 anos, na manhã de quinta-feira, 16. A filha, Isabela Caroline Andreoli, 20, conta que no dia do acidente, todos estavam em casa, ela, o irmão Arthur, o avô e a mãe. Era meio-dia, e família tirava alguns pertences de dentro do carro, porque pretendiam dormir no veículo em outro ponto da localidade, após receberem os avisos das autoridades sobre o risco de deslizamentos.

Familiares e amigos se despediram de Josaine na manhã de quinta-feira, 16. A mulher de 46 anos foi a primeira vítima de Encantado / Crédito: Diogo Fedrizzi

Isabela lembra que enquanto estavam fora da casa, ouviram um barulho e viram a casa dos vizinhos ser levada pelas terras. Arthur estava dormindo dentro da residência deles e Isabela correu para acordá-lo. “Quando eu olhei para o lado para ver a minha mãe, em segundos, o morro do lado esquerdo também tinha desmoronado e tinha levado ela junto”.

Isabela diz que os irmãos chegaram a encontrar a mãe com vida, debaixo do tronco de uma árvore. A família e os vizinhos chamaram ajuda, mas não havia mais passagem para a localidade. “Naquela tarde, minha mãe não resistiu e faleceu. O corpo ficou com a gente naquela noite e mais um dia, até os bombeiros conseguirem chegar”. Depois de 16 dias, a família conseguiu sepultar Josaine no cemitério de Jacarezinho.

“Decidimos nos
jogar na água”

Com a subida do nível do rio, vieram os pedidos de resgates. Pessoas ilhadas, nos telhados, em casas de vizinhos. A Defesa Civil iniciou a busca por moradores em risco com barcos, mas logo o trabalho se tornou impossível. Até chegarem os helicópteros do governo, as pessoas continuaram pedindo ajuda. Aeronaves particulares também foram colocadas à disposição para os resgates.

“Estamos vivos por um milagre de Deus, a gente desceu para salvar os cachorro, meus pais, todo mundo, achamos que ia ser uma enchente igual a todas as outras”, contam Annes Mattei e Caroline Ramos Silva. Moradores do bairro São Miguel, em Cruzeiro do Sul, os empresários aguardaram até sexta-feira, 3, à tarde, para serem retirados da água, junto da família.

“Quando vimos as casas caindo, as casas dos vizinhos, dos meus pais, a parte velha da nossa casa, nós decidimos todos nos jogar na água”, conta Caroline.

O casal e os familiares ficaram à espera do resgate por 36 horas. “Quando pensei que ia perder a vida, minha maior força foi pensar que eu tinha um emprego. Pensei que não podia desistir, eu já estava com hipotermia, não ia aguentar se não fosse resgatada na tarde de sexta”, conta a empresária. Ela também pensava no emprego das funcionárias e que precisa estar viva para cuidar dos pais.

No tempo em que passaram na água ou agarrados aos troncos das árvores, Annes conta que o cunhado fazia a chamada dos familiares e, de 10 em 10 minutos, perguntava se todos estavam bem. “A gente lutou um pela vida do outro. Fomos nos afogando, nos empurrando, até acharmos um pé de butiá. Um tronco muito grande que nos salvou”, conta Caroline. A família ainda conseguiu chegar em um galpão a cerca de 30 metros da casa deles, onde passaram outra noite antes de serem salvos.

Sem moradia

Mesmo aqueles que tiveram suas vidas salvas, lidam com a tragédia. O processo de limpeza foi árduo e passou por uma nova enchente na madrugada de segunda-feira, 13, quando o Taquari atingiu 27,78 metros e atrapalhou os trabalhos com rodos e lava jatos.

Os temporais deixaram mais de 26,2 mil pessoas desalojadas na região. Diferente de outros temporais, não há previsão para muitas dessas famílias deixarem os abrigos. E os municípios buscam alternativas temporárias de moradias, ou novas áreas para a construção.

Cenário de destruição

O cenário de destruição se estende por Marques de Souza. Moradores como Carlos Busch testemunharam a força das águas. Ele relata o impacto do desastre em sua residência, onde toda a mobília foi perdida e parte da estrutura da casa comprometida.

“A casa dentro, os móveis, perdemos tudo”, lamenta. “Estamos mal, muito mal”, desabafa. Busch ainda tentava recuperar algumas roupas que restaram após a inundação ter levado embora portas, janelas e pertences preciosos.

Com 14 anos de residência na região, ele afirma nunca ter presenciado uma catástrofe semelhante. “Na enchente passada, a água invadiu a nossa casa, perdemos algumas coisas, mas desta vez foi horrível”, recorda.

Moradora da localidade de Faxinal Silva Jorge, em Bom Retiro do Sul, Regina Dornelles também teve a residência atingida. Mesmo tendo levantado os móveis e saído de casa, ela viu a estrutura ser tomada pelas águas, perdeu o que tinha no interior dos dois pisos da residência e diz não querer voltar. “Eu digo, quem é mais novo, que saia daqui. A partir de agora eu não pretendo ficar”.

Morador de Marques de Souza, Carlos Busch teve parte da casa destruída pelas cheias e diz nunca ter presenciado algo semelhante


PESSOAS DESALOJADAS

LAJEADO
Pessoas desalojadas: mais de 1.300. Prefeitura ainda faz o levantamento por meio de um cadastro disponível
Pessoas em abrigos: 358 famílias e 871 pessoas

ESTRELA
Pessoas desalojadas: município faz levantamento
Pessoas em abrigos: 800
Casas destruídas: 2 mil

ARROIO DO MEIO
Pessoas desalojadas: 11.400
Pessoas em abrigos: 600
Casas destruídas: mais de 1 mil

TEUTÔNIA
Pessoas desalojadas: 13
Pessoas em abrigos: 13

ENCANTADO
Pessoas desalojadas: entre 4 e 5 mil
Pessoas em abrigos: 794
Casas destruídas: 150

CRUZEIRO DO SUL
Pessoas desalojadas: 5.722
Pessoas em abrigos: 435
Casas destruídas: mais de 1 mil

MARQUES DE SOUZA
Dados ainda são contabilizados

TAQUARI
Pessoas desalojadas: 817 famílias
Pessoas em abrigos: 143 famílias

VENÂNCIO AIRES
Pessoas desalojadas: não há dados divulgados
Pessoas em abrigos: 270

 

Mortes e desaparecidos no Vale
(Conforme Defesa Civil do Estado)

Óbitos (36)
Lajeado: 2
Cruzeiro do Sul: 10
Paverama: 2
Forquetinha: 2
Venâncio Aires: 4
Capitão: 2
Roca Sales: 10
Putinha: 1
Encantado: 1
Travesseiro: 1
Taquari: 1

Desaparecidos (31)
Roca Sales: 6
Relvado: 2
Poço das Antas: 1
Marques de Souza: 1
Cruzeiro do Sul: 9
Lajeado: 6
Encantado: 2
Arroio do Meio: 1
Teutônia: 3

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