Seis meses depois, 280 pessoas ainda vivem em abrigos

APÓS ENCHENTES

Seis meses depois, 280 pessoas ainda vivem em abrigos

Entre a tentativa de manter uma rotina, de deixar a “casa” organizada e reconstruir a vida, moradores que perderam residências nas cheias de maio passam os dias à espera da mudança

Seis meses depois, 280 pessoas ainda vivem em abrigos
Entre os passatempos de Rene, Vitória e Cristina no abrigo, está a conversa e o chimarrão. (FOTOS: Bibiana Faleiro)
Vale do Taquari

Na porta do Ginásio do Esporte Clube XV de Novembro, uma roda de chimarrão. É ali que cerca de 40 famílias de Cruzeiro do Sul ainda vivem, depois de terem perdido suas casas nas enchentes. Há seis meses, o pavilhão se transformou em abrigo e ali, em espaços improvisados, quase 60 pessoas passam os dias. Na região, além do município, Encantado também mantém abrigos ativos. Ao todo, pelo menos 280 pessoas permanecem fora de casa no Vale.

No ginásio, divisórias de madeira criam pequenas separações. No interior, ficam cama, geladeira e fogão. A chave do cômodo está sempre nas mãos dos moradores, que zelam pelo que conquistaram depois da tragédia. O banheiro e a cozinha são compartilhados, e uma escala, feita pelos próprios inquilinos, dá conta da limpeza.

Longe de se parecer com suas casas, no ginásio, tentam manter a rotina, com a esperança de se mudarem o mais breve possível. A expectativa é que as famílias sejam realocadas na metade deste mês. Uma reunião entre município e Estado na próxima semana deve definir detalhes. No abrigo, ainda estão ex-moradores de bairros como Vila Zwirtes, Glucostark, Bom Fim e Passo de Estrela.

Em setembro, 28 casas provisórias foram entregues pelo estado a Cruzeiro do Sul

Expectativa

Entre eles, Serenita Zwirtes, 68. Natural de Bom Retiro do Sul, ela morou, nos últimos anos, na Vila Zwirtes. As cheias destruíram a casa dela já em setembro de 2023 e a aposentada passou a viver em uma casa por meio do aluguel social. A enchente de maio também atingiu a residência alugada e, à espera de reformas, o local ainda não pode voltar a ser habitado.

Desde então, os dias são passados na companhia de muitas pessoas que, até então, não conhecia, mas que se tornaram amigos. “Um conversa com o outro, sentados aqui. O tédio vai e volta. Não tem outra coisa pra fazer”.

Ao lado dela, Andréa da Costa, 49, compartilha essa rotina. Mas na próxima semana, ela espera poder sair do abrigo. A ex-moradora da Vila Zwirtes teve a casa condenada depois das enchentes de maio, e foi contemplada com R$ 200 mil do Governo Federal para a aquisição de uma nova moradia. A partir dos próximos dias, leva suas coisas a um apartamento próximo ao Parque dos Dick, em Lajeado.

Apesar das amizades feitas no abrigo, Andréa diz que a organização não funciona entre todos os moradores, e muitas brigas acontecem. Além disso, o barulho, música alta e os costumes diferentes entre os “vizinhos” são dificuldades superados a cada dia.

Mais de 60 histórias diferentes são contadas dentro do abrigo. “Todas as famílias tinham uma casinha. Era feinha, pequeninha, grande, mas era sua. Hoje não temos nada. Só esperança”, afirma outro morador, Edson José de Araújo, 54.

Para recomeçar

Aos 66 anos, Edevar não esperava ter que recomeçar. Ele vive no abrigo em Cruzeiro do Sul há seis meses

Entre doenças, idade avançada ou necessidade de cuidar das crianças, muitos dos abrigados não conseguem manter um emprego, o que deixa os dias ociosos e os preocupa. Aos 66 anos, Edevar Porto da Cruz veio de Tramandaí ao Vale do Taquari para construir uma casa e ter estabilidade. Esse sonho foi concretizado no bairro Bom Fim, em Cruzeiro do Sul, mas, em pouco tempo, também foi levado pelas águas. Nesta idade, não esperava ter que recomeçar.

“A gente não tem idade mais para estar pulando muito. Eu perdi tudo, minhas ferramentas, a betoneira. Estou trabalhando a um preço mais barato e consigo uns trabalhos só de vez em quando”. Pedreiro de profissão, ele diz que o trabalho está difícil e que tem a esperança de se aposentar por idade em breve.

Aos 67 anos, Rene Pinto também espera melhorar de vida e aguarda as novas casas prometidas pelo governo. Ele conta ter adquirido novos mobiliários nesses seis meses e que muita coisa também veio de doação. Quando sair do ginásio, espera recomeçar. “O que eu tenho no meu barraco hoje, vou levar comigo”.

Enquanto isso, busca formas de passar o tempo, entre conversas, descanso e chimarrão. “A gente já está acostumado, vai pra casa, volta, a água corre com a gente, perde tudo. Só Deus sabe para onde vamos depois”.

Oportunidades

Graziele Mallmann (d) encontrou nas oficinas no abrigo uma oportunidade de empreender e passou a vender fatias de bolo

Para outros moradores, o tempo no abrigo serviu como oportunidade de iniciar uma nova profissão. Com a presença de voluntários da Aliança Evangélica Brasileira na cidade desde o início das enchentes, oficinas são oferecidas no ginásio. Entre elas, a de confeitaria.

Voluntária do Rio de Janeiro, Regina Borges da Paula é psicóloga, formada em teologia, e ministra a oficina. Ela já esteve no abrigo em junho para ensinar as mulheres a fazerem bolos, tanto para consumo, quanto para comercialização. A iniciativa deu resultado e faz quatro meses que uma das moradoras começou a produzir bolos e vender o doce em fatias e potinhos.

Graziele Mallmann, 39, conta que gostava de fazer doces em casa, mas nunca tinha pensado em profissionalizar as produções. “Aqui, eu passei a me interessar. Faço aqui na cozinha e vendo para outras pessoas abrigadas, para os moradores, e para fora também”, afirma.

Casas provisórias

Um pouco abaixo do ginásio, ainda no bairro São Gabriel, 28 residências provisórias foram montadas pelo estado em setembro, em uma espécie de container. Apesar de mais conforto e dignidade, moradores ainda aguardam a possibilidade de se mudarem para moradias definitivas.

Maria Amelia Schabat, 43, foi uma das contempladas. Ela não pode trabalhar por conta da saúde, e o marido mantém um emprego como jardineiro, dependendo do clima para poder trabalhar. “Não temos como comprar uma casa, mas estamos bem. Fazer o que, estamos todos no mesmo barco. Todo mundo perdeu, não fomos só nós”.

Em Encantado

A rotina de quem vive em abrigo há mais de meio ano, também é encontrada em Encantado. O município mantém abertos os pavilhões do parque municipal e uma creche na Vila Moça para os moradores que perderam suas residências nas cheias.

Maria Luísa Machado, 36, está entre eles. Morando com o marido e o filho de 5 anos no parque João Batista Marchese, ela torce para uma vida melhor não estar muito distante. “A rotina é quase normal, os maridos saem para trabalhar e algumas mulheres também, à noite retornam, a sensação é de estarmos em um condomínio”, descreve.

Os abrigados no parque recebem uma cesta básica por mês, a visita de um médico a cada 15 dias e as assistentes sociais passam semanalmente para auxiliar nas dificuldades das famílias.

“É muito cansativo, todos gostaríamos de estar em nossas casas agora. Tem várias situações que incomodam. Barulheira, gritaria, som alto. Nós percebemos que as coisas estão sendo feitas, mas é bem devagar. Quanto antes pudermos sair, melhor”, afirma.

Os desafios também são constantes para Fabiana de Paula, 37, que reside com o esposo e duas crianças autistas no abrigo do parque. “Não é fácil e se tornou bem exaustivo depois de todos esses meses. Por enquanto vivemos na expectativa, não temos respostas, então só podemos esperar que cumpram o que prometeram”. A família residia no bairro Navegantes e teve a casa completamente destruída na cheia.

Fabiana de Paula, 37, reside com o esposo e duas crianças autistas no abrigo em Encantado

Até o fim do ano

O município de Encantado planeja desativar os abrigos temporários até o fim deste ano, com a chegada de 50 módulos habitacionais até o dia 20 de novembro. Essa medida permite a realocação das 84 famílias ainda desabrigadas. No total, 221 pessoas estão fora de casa, além de 460 aluguéis sociais em andamento. O município já recebeu 30 unidades provisórias do governo do Estado.

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