O horror e outras metáforas  “Nossa parte de noite”, de Mariana Enriquez

Opinião

Rosane Cardoso

Rosane Cardoso

Professora de literatura

O horror e outras metáforas “Nossa parte de noite”, de Mariana Enriquez

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A Argentina, assim como outros países da América Latina, notadamente Colômbia, Chile e Peru, tem sido insistente no seu slogan mais famoso: ¡Dictadura, nunca más! Nesse propósito, crescem os textos literários – inclusive para a infância – bem como a gama de narrativas cinematográficas, caso do excepcional Argentina, 1985, de Santiago Mitre, disponível na Prime Vídeo.

Também no campo da literatura, a jornalista Mariana Enriquez segue essa trilha. Autora listada entre os destaques literários da nova geração de escritoras argentinas, Enriquez iniciou a carreira em 1994, aos 21 anos, com o romance Bajar es lo peor. Atualmente, aos 49 anos, sua atuação se consolida pelos vários prêmios recebidos.

Embora a última ditadura argentina esteja presente no texto e seja o que empurra as personagens para a fuga, este tema pode passar despercebido, por vezes, pois Mariana Enriquez cria uma narrativa que mistura misticismo, suspense policialesco e horror sobrenatural. Quando o romance se inicia, deparamo-nos com um pai em fuga com seu filho Gaspar. A mãe morreu em situação misteriosa e, aos poucos, descobrimos que ela pertencia a uma sociedade secreta, a Ordem. Gaspar, assim como o pai, é detentor de mediunidade, característica que interessa aos objetivos da entidade.

A Ordem – que reivindica a vida eterna – necessita de ambos para que possa estabelecer determinados rituais, ainda que isso custe a vida dos dois. Mas não se trata de uma instituição de fácil erradicação. A Ordem remonta a séculos e veio da África, passando pela Inglaterra até chegar na Argentina. Aos poucos, o leitor mergulha em um universo de obscuridades propostas por um poder misterioso, pelo mal que se constrói na sombra e que, sim, podemos interpretar como uma metáfora da ditadura que sempre se move de maneira insidiosa.

Ao longo de quase 550 páginas, a leitura segue em uma crescente que exige a atenção do leitor. Nossa parte de noite é um romance arrebatador e com muitas camadas de interpretação que envolvem necessidade de sobreviver, anseios pessoais, questões políticas e familiares, tudo envolto em um clima de mistério e, por vezes, de horror. A narrativa não oferece pausas para respirar e isso não tem a ver somente com os rituais macabros e com o sobrenatural, mas também com o próprio modo de escrever da autora que se transforma também em uma experiência para o leitor.

Ainda, no panorama oferecido pela escritora, o leitor visita a Londres dos anos de 1960, em meio à avalanche psicodélica, a retomada da democracia, a explosão da AIDS. Como consta na apresentação do livro pela editora Anagrama, Mariana Enriquez consegue entrecruzar o terror sobrenatural com horrores reais e, realmente, coloca o leitor em xeque ao confrontá-lo com a realidade que se sobrepõe aos fictícios monstros e atrocidades.

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