Excesso de atestados evidencia saúde mental fragilizada

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Excesso de atestados evidencia saúde mental fragilizada

Pesquisa mostra que, em dois anos, aumentou em 30% o afastamento por depressão, estresse e ansiedade. Especialistas apontam necessidade das empresas criarem espaços voltados ao diálogo para o trabalhador se sentir mais seguro e superar crises emocionais

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Excesso de atestados evidencia saúde mental fragilizada
A modernização das empresas interfere na relação do indivíduo com o mundo do trabalho. Especialistas verificam que pandemia acelerou a imersão digital e o adoecimento psíquico dos trabalhadores. Crédito: Divulgação
Vale do Taquari

Em meio à retomada da presencialidade nas empresas, pesquisa voltada em gestão de atestados médicos e saúde corporativa indica um crescimento de 30% nos afastamentos do trabalho devido a problemas de saúde mental.

O levantamento feito no país avaliou 480 mil atestados cadastrados na plataforma da startup Closecare entre janeiro de 2020 a abril deste ano. Foram avaliados atestados referentes a transtornos psíquicos e comportamentais, tais como: episódios depressivos, ansiedade e estresse.

“Essa era uma tendência. Desde o início da pandemia estimávamos um aumento. Só não se esperava que fosse em números tão significativos”, avalia a gerente do Centro de Inovação e Saúde Mental do Serviço Social da Indústria (Sesi), Letícia Lessa. “O período de isolamento, o medo da morte, a ameaça do desemprego. Todas são questões que atravessaram a nossa vida e aceleraram esse adoecimento.”

Antes da chegada da covid-19 no país, os transtornos psicoemocionais eram a 3ª causa mais comum de afastamento do trabalho. Estimativas da Previdência Social apontam que esse tipo de enfermidade será a principal causa de afastamento do trabalho até 2030.

O tempo médio de afastamento por saúde mental costuma ser de seis dias. No caso dos atestados por ansiedade, o distanciamento do trabalho passou de 3,3 dias em 2020 para 4,7 dias neste ano.
Pela análise da Closecare, há mais incidência de transtornos mentais em atividades sem esforço físico, como escritórios de advocacia, empresas de tecnologia, setores administrativos, cargos onde o salário médio é mais alto.

Ambiente seguro

Um espaço para ajudar os funcionários. Essa é a estratégia da Girando Sol. Conforme o diretor, Gilmar Borscheid, ter um ambiente de diálogo, para que o trabalhador se sinta seguro para falar é fundamental tanto na prevenção quanto para encaminhar ao tratamento. “É um assunto delicado. Sabemos que o estresse, a depressão e a ansiedade aumentaram muito. Por uma questão ética, não contabilizamos isso. Nosso interesse é garantir o acompanhamento do trabalhador.”

A empresa dispõe de profissionais para esse contato. Reúne o setor de Recursos Humanos e de psicologia. “Cada pessoa tem seu tempo. Os líderes dos setores ajudam, observam se há algo de errado e aconselham o funcionário a conversar.”

Equilíbrio na cobrança

O diretor da Paes Digital, do ramo de marketing e inovação, Patrick Paes, considera fundamental haver um equilíbrio entre a cobrança pelas metas, pelas entregas, com os compromissos da vida do trabalhador.
No ramo de atuação dele, um dos principais problemas é o Burnout. “Não tivemos nenhum caso na empresa. Isso mostra que estamos tratando o assunto da maneira correta”, avalia.

Essa síndrome foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma enfermidade provocada pelo trabalho. Na avaliação dele, essa elevação nos números de transtornos é um problema também por que se fala pouco sobre isso. “Por muito tempo, se tratou o estresse, a depressão, como um sinal de fraqueza. Dizem até hoje: ‘é só ser feliz’. Como se fosse só apertar um botão de liga e desliga.”

Felicidade no trabalho

Superintendente de Desenvolvimento da Unimed-VTRP, o psicólogo Fábio Loreto, realça como um dos motivos para o cenário de adoecimento psíquico são as mudanças rápidas no mundo e nos modelos de trabalho. Para ele, há uma mudança em curso, com a necessidade das organizações adotarem medidas preventivas e também de identificação e encaminhamentos para tratamentos.

Dentro da empresa em que trabalha, há o fomento para a escuta e as ações de saúde. “Temos um olhar atento à qualidade de vida. Oferecemos acompanhamento integral a nossos colaboradores, tanto no âmbito físico quanto psíquico.”

Neste processo, frisa o respeito à individualidade. “É preciso haver um cuidado para não ser invasivo. Para isso, o líder tem que saber acolher o trabalhador e ajudar a identificar os casos, o que essa pessoa gosta, o que não gosta e com o que se identifica. Para nós, quanto mais felicidade, melhores são nossos ambientes de trabalho e consequentemente os resultados.”

Lente de aumento para o negativo

O médico cardiologista e especialista em Programação Neurolinguística, Nelson Spritzer, verifica que as causas dos episódios de ansiedade estão relacionadas ao futuro. Há uma “pré-ocupação”, diz. “Pensar o que pode acontecer é normal. Fazer planos, traçar objetivos. Isso faz parte da nossa vida. A pessoa ansiosa enxerga com lente de aumento o lado negativo e se diminui, se acha mais fraca e competente do que realmente é.”
O medo do que está por vir é uma forma de se preparar.

Por outro lado, há graus elevados de ansiedade, com crises que levam ao pânico. Neste caso, os sintomas psicossomáticos paralisam o indivíduo. “A pessoa não dorme mais, não se sente bem em nenhum lugar. Fica em um quadro permanente de nervosismo. Nesta etapa, não há mais defesa, pois é uma dor imobilizante. Para sair, só com acompanhamento médico e uso de medicamentos.”

“O tema saúde mental no trabalho ainda é carregado de preconceito”

Letícia Lessa, gerente do Centro de Inovação e Saúde Mental do Sesi. Crédito: Arquivo Pessoal

No passado, acidentes e lesões físicas marcavam os afastamentos do trabalho. Hoje, há um crescimento de enfermidades psíquicas, tais como: ansiedade, depressão e síndrome do pânico. Para Letícia, é preciso romper paradigmas, de que os problemas psicoemocionais são sinais de fraqueza, e incorporar esses assuntos no dia a dia das empresas.

A Hora – Frente a essa epidemia depressiva e de ansiedade, o que o gestor precisa fazer?

Letícia Lessa – Há muito a ser feito. Primeiro o líder deve entender o que é saúde mental. A pesquisa mostra os afastamentos e que isso será uma constante na nossa sociedade. Os dados mostram também onde há maior incidência. É justo nas áreas administrativas. Ao saber disso, precisamos olhar para dentro e ver como isso interfere na minha realidade. Quando estamos em uma empresa de pequeno porte, fica mais evidente e rápido diagnosticar esse adoecimento.

Em um contexto de grande ou média companhia, é fundamental criar uma rede de profissionais. Treinar os gestores mais próximos para eles reconhecerem os riscos. Ter uma conduta mais preventiva do que reativa.
Falar de saúde mental é tratar de relacionamentos saudáveis. Cuidar desse setor reflete nos afastamentos, nas admissões, na rotatividade da mão de obra e de ter indicadores produtivos dentro do que a gestão da empresa espera.

– Admitir algum problema psicoemocional para alguns é um sinal de fraqueza. Inclusive por muito tempo se repetia a máxima: deixe os problemas da porta da empresa para fora. Como romper com esses paradigmas e ajudar no bem-estar completo de vida e trabalho?

Letícia – Entender as pessoas, suas singularidades e potenciais é um dos caminhos. Junto disso, também o olhar sistêmico, de que a produção de qualidade passa pela capacidade física e emocional do trabalhador.
As empresas estão se reinventando. O mundo se transforma. Quando falamos de atestados por saúde mental isso é custo e perda de capacidade produtiva.

Acima disso, ainda estamos tratando de vidas e o contexto do trabalho como indicador de bem-estar. Esse tipo de situação não se resolve com demissão. Daqui a pouco a empresa vai admitir outro profissional e o problema vai continuar. Essa condição está presente no dia a dia, é uma questão social.

– De que maneira esse impacto no ambiente de trabalho pode ser minimizado?

Letícia – Importante é falar, de forma aberta, segura. Seja em uma conversa com os líderes, em uma avaliação do trabalhador. Trazer o assunto, colocar ele na pauta, com o cuidado de não ser invasivo. O tema saúde mental no trabalho ainda é carregado de preconceito. Ouvimos muito ainda “o fulano é louco”, “precisa de psiquiatra”, coisas desse tipo.

Existe um mito de que não podemos melhorar nossos relacionamentos profissionais, com líderes e subordinados. Precisamos ressignificar isso e criar canais de diálogos, pois esse sofrimento psíquico interfere em todos os níveis do indivíduo, da sociedade e da nossa entrega produtiva.


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