A regularidade de chuvas sempre foi um trunfo para a agricultura gaúcha. Dados da Emater/RS-Ascar indicam, porém, que a média pluviométrica está em queda há pelo menos 10 anos. Romper a tradição de desperdício e enxergar a água como uma riqueza a ser economizada é um desafio que municípios, técnicos agrícolas e produtores rurais precisam enfrentar.
Um dos pioneiros na conservação de recursos hídricos na região é Travesseiro. Desde 2018, a preservação de nascentes é lei municipal. No mesmo sentido, vereadores de Arroio do Meio aprovaram, em 2021, legislação que garante o programa Água Viva, uma parceria da Emater com a Secretaria da Agricultura. Marques de Souza também elaborou uma lei de incetivo a preservação de fontes neste ano.
Mesmo sem lei que assegure medidas de preservação, a administração de Capitão auxilia os produtores na proteção de fontes de água. Essas iniciativas se mostram cada vez mais necessárias. A falta de chuvas já levou 15 municípios do Vale do Taquari a emitirem decretos de emergência. Até o fechamento desta edição, a Defesa Civil havia reconhecido 144 cidades em calamidade por conta da estiagem no RS.
Propriedades sustentáveis
Um dos objetivos do projeto de Marques de Souza é tornar os agricultores do município autossuficientes no abastecimento de água. A administração fornece horas máquinas gratuitas e o material necessário para proteção da nascente.
As fontes ainda são acompanhadas de perto por técnicos da secretaria de Agricultura. De acordo com o coordenador da pasta, Diego Bazzo, afirma que a iniciativa alia consciência ambiental e eficiência produtiva. “Ajuda a proteger o meio ambiente, ter uma água de qualidade e evitar o desabastecimento em épocas de estiagem.”
Rodrigo Augusto Huppes conserva vertentes em Linha Orlando. “Sem esta nascente a gente não iria produzir nada e nem teria água para beber”, constata. As fontes geram a sustentabilidade para família e à produção de 30 cabeças de gado e mil suínos.
Luta pela água viva
Faz 34 anos que o extensionista da Emater de Arroio do Meio, Elias de Marco, se esforça para conscientizar sobre a importância da preservação de nascentes. No ano passado, foi sancionada a lei que assegura o incentivo aos agricultores preocupados em conservar os recursos hídricos.
“Essa lei veio amparar o projeto, nos deu ferramentas para trabalhar. Nós temos que aproveitar ao máximo as águas superficiais e a água dos poços artesianos guardar para períodos extremos”, explica Marco.
Com menos sais, a água superficial é mais saudável tanto para o consumo humano, quanto para as lavouras, diz o técnico. O uso contínuo de água subterrânea, de poços artesianos, pode salinizar o solo e prejudicar algumas culturas. Além disso, água corrente não passa duas vezes no mesmo lugar.
“Se não preservarmos e captarmos a água das fontes, ela vai embora. Seguimos a sugestão do Elias, levamos o programa para nossos superiores e o projeto virou lei”, relata o secretário de Agricultura Élcio Lutz.
O programa funciona em seis etapas. Primeiro, o agricultor que tenha uma vertente na propriedade faz a inscrição na Agricultura ou na Emater. O próximo passo é uma visita técnica à nascente, seguida de um orçamento dos materiais necessários. A prefeitura libera os recursos e, por fim, desloca mão de obra especializada.
No ano passado, o projeto atendeu a um agricultor. Para este ano, 15 nascentes já estão na fila para serem conservadas.
Duas décadas de proteção
Quando a Emater de Arroio do Meio e os agricultores da localidade de Morro do Leão iniciaram a sociedade de águas, Diego Lansing tinha apenas 18 anos. O pai, Renê Lansing, foi um dos líderes do movimento que implementou, em 2004, a rede de água na região.
A estrutura abastece 19 famílias, todas tiram o sustento do campo. A volumosa fonte de água fica no alto do morro, ao lado de uma plantação de eucaliptos, próximo ao limite com Capitão. Quanto mais alta a vertente, melhor a qualidade da água.
Na propriedade dos Lansing, a água da associação é aproveitada apenas para o uso doméstico. Para produção, o abastecimento vem de um sistema de captação de fontes em área preservada pela mata nativa. Um poço artesiano complementa a necessidade hídrica para produção de leite e criação de suínos.
Hoje, são 450 leitões e 31 vacas que fornecem cerca de 700 litros por dia. “Tem muita vaca seca. Quando está chovendo normal, produzimos em média mil litros”, revela Diego Lansing.
A deficiência de chuvas começou a afetar a captação de água na semana passada. As três vertentes protegidas geravam, em média, cinco mil litros de água por dia.
“Agora temos a metade, se não menos”, avalia Diego enquanto mostra o sistema hídrico desenvolvido no início do ano 2000. Mesmo para quem se preocupa com a preservação de nascentes, a disponibilidade de água não é mais certeza.
Entrevista | Dionei Delevati, agrônomo
“Nós vamos ter que se adaptar a esse tipo de situação”
O agrônomo Dionei Delevati é um dos desenvolvedores do Programa Protetor das Águas, criado em 2011 em Vera Cruz, no Vale do Rio Pardo, e
considerado um modelo em proteção de nascentes. São 103 nascentes protegidas para abastecer 63 propriedades rurais. Os agricultores não pagam pela água. Um fundo municipal mantém o projeto que tem a continuidade assegurada por lei.
A Hora – Quais são as técnicas utilizadas para preservação de nascentes e fontes de água? Como isso contribui para a disponibilidade hídrica?
Dionei Delevati – As nascentes de água são uma das principais fontes de contribuição para a formação dos rios, sangas e riachos. A preservação dessas
nascentes pode ser feita de diversas maneiras. A mais simples e efetiva é preservar a vegetação ao entorno dela. Essa vegetação pode ser cercada para evitar que o gado chegue neta. Onde tu tens criação, esse é o principal fator a ser prevenido. Quando uma nascente é utilizada para o abastecimento de uma propriedade ou mais de uma propriedade, é uma fonte bastante volumosa e tem vários sistemas de proteção que podem ser feitos. Depende muito das condições que tens no local. Independente do sistema de proteção utilizado, o ideal é proteger a área no entorno da nascente. No meio natural, o entorno está com uma vegetação bastante desenvolvida, com árvores e tudo mais. No projeto “Protetor das Águas”, a diferença da qualidade de água antes e depois da proteção é um absurdo, o que aumenta a quantidade de água e principalmente a qualidade é muito significativo.
– Nos últimos dez anos tivemos deficit de chuvas no RS. Como projetos como esse podem contribuir para que a defasagem hídrica não seja tão sentida?
Delevati – Esse problema já é um pouco mais complexo. Isso é em função das mudanças climáticas. Nós vamos ter que se adaptar a esse tipo
de situação. Às vezes a gente tem muita chuva, ou ás vezes a gente tem pouca chuva. O Rio Grande do Sul tinha uma tradição de ter um regime hídrico bastante irregular. E isso fez com que a preservação da água não fosse muito significativa. De qualquer forma, tu tens que preservar o máximo todas as fontes de recursos hídricos. Preservar as nascentes aumenta a qualidade e a quantidade. A gente tem um outro aspecto nos rios do RS que muitos se tornaram assoreados. E isso tem uma consequência bastante grave na conservação de água em uma bacia hidrográfica. Quando chove, uma bacia acumula uma quantidade de água. Como tu não tens a preservação das nascentes, quando chove ela vai embora muito rápido. Isso é um problema endêmico. O ponto chave da proteção das nascentes é reter a água dentro da bacia.
– Por que só agora o poder público se deu conta da importância da preservação das nascentes?
Delevati – A dor ensina a gemer. O sistema de preservação de uma nascente é bastante barato. Para preservar uma nascente, não precisa nem plantar, só deixar a vegetação nascer e crescer. Agora, a intervenção para tornar uma nascente de abastecimento precisa um pouco mais de recurso. Não é muito, mas é recurso. Em um momento como esse, as prefeituras e o poder público têm essa verba e podem auxiliar os produtores.