Quando a Brigada Militar se aproximou, Luís Lisboa pegou o piá pelo braço e correu pro mato. Mais algumas pessoas também conseguiram escapar. Os homens chegaram de forma tão discreta e silenciosa quanto possível para um grupamento de cerca de 100 soldados. E abriram fogo contra os barracos de pau a pique.
Os caboclos não ofereceram resistência, se jogaram no chão para tentar evitar as balas. Foi um banho de sangue.
Do lado das forças oficiais, não há registro de mortos ou feridos graves. Do lado dos monges, foram mais de vinte mortos e oito presos. Em uma foto, de autoria atribuída à BM, os homens aparecem amarrados pelas mãos com cordas.
A aparência é de pessoas pobres, com roupas esfarrapadas. No livro “O viajante Rio Grandense”, de Cezar Reinhardt, editado em 1913, eram descritos como “caipiras, mulatos, caboclos”.
Luís e o filho Manoel, com 11 anos à época, de acordo com seu registro de nascimento, teriam permanecido por mais de um mês embrenhados no mato. “Meu falecido pai e meu avô fugiram. Comeram o pelego do cavalo no mato, para poder sobreviver e não ter que matar o animal. Parece mentira, mas foi essa a história que eu ouvi”, conta Olímpio Lisboa.
Aos 69 anos, o morador de Encantado é o único descendente dos supostos monges de que se tem conhecimento na região de Encantado. Durante a infância e a juventude, escutava do pai os relatos de quem viveu em Pinheirinhos e sobreviveu ao massacre.
O pai e o avô haviam saído de Barros Cassal. Atraídos pelo religioso, acredita Olímpio. Após a fuga, voltaram à terra natal. Anos depois, Manoel retornou ao Vale do Taquari, viveu no bairro Navegantes, em Encantado. Era um homem pobre, que dependia de doações para o sustento. Olímpio foi menino de rua. Apoiado por três famílias locais, tornou-se pintor, depois servidor público, hoje é autônomo e trabalha co serviços gerais.
Presença assustava imigrantes
No início do século XX, um grupo de pessoas se reuniu junto à margem do Rio Taquari na localidade de Pinheirinho, área hoje compreendida pelo município de Roca Sales, próximo a Encantado. Ali formaram um povoado que acredita-se que era formado por cerca de 50 pessoas, incluindo famílias inteiras.
O grupo seguia o Monge Chico, liderança religiosa de característica messiânica, o que rendeu a alcunha de Monges do Pinheirinho.
O movimento possui características semelhantes às de outros movimentos, como os Mucker (1868 a 1874), no Morro do Ferrabrás, onde hoje fica o município de Sapiranga, Canudos (1896 a 97) e Contestado (1912 a 16).
A presença dos caboclos sem terra, de hábitos e fé diferentes daqueles aos quais os imigrantes italianos estavam habituados, gerou desconfiança e medo na comunidade local. Com o tempo, surgiram boatos sobre furtos e abigeatos atribuídos aos membros do acampamento.
A partir do boato de que o grupo planejava um assalto à casa de José Colombo, formou-se um grupo para uma investida.
Primeira incursão
Na noite de 3 de maio de 1902, doze homens partiram a cavalo. Entre eles, os subdelegados de Roca Sales, Napoleão Maiolli, e de Encantado, Guerino Lucca, imigrantes italianos e um caixeiro viajante, Eduardo Sattler.
Munidos de pistolas, espingardas e alguns fuzis de repetição, chegaram no amanhecer do dia 4 ao acampamento. O jornal A Federação informava serem mais de 30 pessoas no local. No Correio do Povo, o número se aproximava dos duzentos.
As condições desse encontro são desconhecidas. De acordo com A Federação, o embate resultou em dois mortos pelo lado dos imigrantes, Sattler e João Lucca, e oito do lado dos caboclos. No cemitério São Pedro, o túmulo de Sattler leva uma cruz branca e os dizeres “morreu por defender os amigos”. Tanto Sattler, como os irmãos Lucca são hoje nomes de rua em Encantado.
Do lado dos caboclos, foram oito mortos, segundo A Federação. Seus nomes e histórias são desconhecidos. Após o episódio, o acampamento migrou para um local mais escondido, no meio mato.
Cem homens e mais de mil tiros
Diante do ocorrido, as forças locais pediram reforço ao governo estadual, à época sob comando de Antônio Augusto Borges de Medeiros. O governo estadual enviou uma tropa de cerca de 100 homens da Brigada Militar. O grupamento partiu de vapor, embarcando em Porto Alegre e chegando até Bom Retiro do Sul, de onde seguiram a cavalo.
Após cercar o local durante dias, em 22 de maio, a Brigada Militar ataca o acampamento. Foram 1560 disparos, de acordo com relatórios da BM. O mesmo relatório afirma que não houve resistência.
Foram 23 mortos, todos do lado dos monges, incluindo mulheres, de acordo com o livro As Santas Putas: um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul, de Antônio Augusto Fagundes, lançado em 1987 pela Martins Livreiro . Os presos teriam sido obrigados a cavar a cova dos companheiros assassinados.
Em junho, o intendente de Lajeado, Oscar Karnal, abriu crédito especial de um conto de réis, para as despesas do recebimento da força púbica. “No mês passado, uma horda de bandidos, capitaneados por um monge, assolou uma linha e ameaçava a colônia inteira, reclamando intervenção enérgica do município e do Estado”, justificava o intendente em seu ato nº 47.
Influência da igreja católica
O componente religioso certamente contribuiu na construção do ambiente que resultou no ataque ao acampamento. A presença de um curandeiro a quem era atribuído grande poder de cura incomodou a igreja católica.
Uma carta escrita pelo padre Domenico Vicentini a seu superior, em 12 de maio de 1902, mostra esse incômodo.
“Agora tem um outro GUAIO (sic), que se faz chamar P. Monge (uma nova edição do famoso Antônio Conselheiro). Depois de haver, por muito tempo, andado pelos matos, desta paróquia e entre os de origem brasileira para fazer sequazes”.
Vicentini relata ainda a incursão dos imigrantes ao local, quando “intimaram àqueles bandidos a se apresentarem, mas aqueles responderam com
tiros e com facões, trucidaram ferozmente dois dos nossos e outros três ficaram feridos.”
O mito do monge milagroso
Cruzar o rio Taquari sem balsa, caminhando sobre as águas. Ferver a água do mate sem acender fogo. Curar doenças com ervas e água da fonte. Relatos como esses contribuíram para a construção de uma imagem mítica.
Alguns relatos relacionam o Monge Chico com o episódio do Contestado ou aos Muckers, o que carece de comprovação documental.
Foram vários os personagens que seguiram a tradição do Monge João Maria. João Francisco Maria de Jesus, o Monge Chico era um desses.
O fim do monge é outro episódio repleto de dúvidas. Muitas pessoas acreditam que tenha sido enterrado vivo e de cabeça para baixo. Considerado seu braço direito, João Enéas teria fugido para Arvorezinha e morrido anos depois.
No local, não há qualquer resquício da presença dos monges. Moradores antigos contavam que eles se instalaram sob uma figueira, que não existe mais. Não fossem escassas obras e a memórias de alguns poucos moradores, o episódio teria caído no completo esquecimento.
Da ancestralidade à academia
Maria Lisane Machado cresceu com o interesse e a curiosidade pela história dos Monges do Pinheirinho. Filha de pai “bugre” e mãe descendente de italianos, na infância, escutava as histórias do grupo contadas pela bisavó, Celestina Sabei Giovanela, que era lavadeira e lavava roupas para integrantes dos monges.
A forma como a bisavó se referia aos monges destoava completamente da abordagem predominante na comunidade local. Aquelas pessoas amigáveis, que viviam de forma solidária e compartilhada, apareciam nos relatos mais comuns como bandidos que ofereciam risco à sociedade.
Quando concluiu a graduação em História, na Univates, decidiu abordar o tema para o Trabalho de Conclusão de Curso.
Em sua pesquisa, teve a oportunidade de conversar com Gino Ferri, que viria a falecer em 2016, aos 93 anos. “Gino me disse que se fosse hoje, teria escrito de outra forma”, diz ela.
Atualmente, Lisane é professora de história e filosofia da EEEM Vespasiano Correa. A história do grupo messiânico que viveu e morreu às margens do rio Taquari mais de um século atrás passou a fazer parte do conteúdo de suas aulas.
“Acho muito importante que isso conste nos livros de história porque é daqui, é a nossa região. Independente de se os caboclos foram bandidos ou heróis, ou se os irmãos Lucca foram bandidos ou heróis, foi um fato importante nessa região e merece ser lembrado”, conclui.
Período de conflitos
O historiador Fabian Filatow afirma que se tratava de um período conflituoso, em função da recente vinda de imigrantes europeus à região. “A chegada de estrangeiros nunca vai ser harmoniosa. Quem está não quer perder e quem chega não quer ficar sem”, resume.
Filatow afirma que, pela falta de documentos, é difícil determinar quem eram aquelas pessoas chamadas pelos imigrantes de monges. Não se sabe ao certo qual era a fé professada por eles. Filatow refere-se a eles pelo termo “nacionais”, que os diferencia dos imigrantes.
O historiador avalia que o Estado é causador desses conflitos, no momento em que reconhece o imigrante como proprietário legal de terras, que muitas vezes já eram habitadas por nativos.
“Alguém compra a terra, registra e diz que há invasores. Isso legitima uma ação de violência. Mas muitas vezes são famílias que estão ali há gerações.”
Para Filatow, esses nativos eram considerados sinônimo de atraso, no contexto do positivismo.
“Houve um trabalho de memória e de esquecimento. Uma historiografia laudatória dos imigrantes alemães e italianos que fizeram dos seus braços o RS. Se deixou à margem a história esse nativo”, afirma.
Pinheirinho na canção tradicionalista
A história do massacre dos Pinheirinhos foi traduzida em canção pelos compositores Fábio Tiecher, Thiago Vian e Jorge Moreira, esse último falecido em 2020. A canção foi defendida no tradicional festival Canto da Lagoa, em novembro passado.
“Percebemos a falta de músicas com temáticas regionais. Fala-se muito do gaúcho da pampa, das missões, mas pouco se fala do gaúcho do Vale e da história do Vale. A ideia é um nativismo regional”, recorda Tiecher.
A canção foi finalista da etapa nacional do festival. Na etapa regional, ganhou melhor arranjo e melhor tema relativo ao Rio Taquari. O vídeo está disponível no Youtube e a música deve ser lançado na coletânea do festival.
Livro deve ganhar nova edição
Lançado em 1975, Monges do Pinheirinho é um dos primeiros e principais relatos sobre o episódio. De autoria de Gino Ferri, a obra teve duas edições
O livro é criticado por alguns historiadores, que apontam influência da visão da história pelo lado imigrante. No entanto, até hoje, não se localizou relatos ou documentos que possam contá-la do ponto de vista dos caboclos.
“Não concordo com tudo que Gino escreveu. Mas se não fosse o trabalho dele, os Monges do Pinheirinho jamais seriam conhecidos. Claro que ele tomou partido, mas foi o cara que manteve essa memória”, avalia o historiador Fabian Filatow.
Filho de Gino, o arquiteto Cláudio Ferri planeja lançar uma terceira edição, com a inclusão de documentos que acabaram não entrando nas palmeiras edições.
Para Ferri, o episódio foi visualizado pelos olhos de cidadãos de Encantado com uma visão católica. “A igreja não via isso com bons olhos. E o livro fala de um movimento feito por católicos contra determinado grupo que interferia nos projetos da igreja.”
A obra está disponível para download no site ginoferri.com.br.