Riquezas esquecidas da Última Flor de Lácio

Opinião

Gilberto Soares

Gilberto Soares

Coluna aborda temas do cotidiano, política e economia. Escreve duas vezes por mês, sempre aos sábados.

Riquezas esquecidas da Última Flor de Lácio

Por

Gustavo Adolfo 1 - Lateral vertical - Final vertical

“Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat…”
Refrão de Samba do Approach,
música de Zeca Baleiro
Comemoro 43 anos de ideias, textos e ilustrações com o intuito de comunicar. Tempo interessante de uma produção intelectual sem a pretensão de “fazer arte”. Dessa trajetória, 29 anos passaram-se aqui, em Lajeado. Essa experiência torna-me um decano, título informal com jeito de xingamento. E foi bem assim que o senti ao ouvi-lo de um amigo. O estranhamento eventual estimulou esta reflexão sobre o rico universo de nossa língua. Atentar para o avanço do novíssimo e a retração do antigo e imergir na “última flor de Lácio, inculta e bela” (valei-me, Olavo Bilac). Daí, trazer à tona algumas joias nestes dias de publicidade e conversas virtuais eivadas de offs, likes, “vcs”. É um mergulho contemplativo. Por falta de fôlego e talento, este escrevinhador não ousaria um “sem limites”.
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TRÁGICA. Ninguém mais utiliza banzo para definir uma aflição capaz de ferir a alma de morte. Sinal dos tempos (?), pois o vocábulo é rebento gestado a ferro e fogo no ventre de mais de 300 anos de escravidão no Brasil. Seu som grave e triste não deixa dúvidas sobre o fardo que impõe: ser uma doença dos escravos brasileiros causados pela saudade da África. É a antítese da formosa esperança, renascer radiante como aurora, embora concepção faça o homem ainda mais semelhante a Deus – criatura a criar o criador.
VC CHEGASTE. Não é fácil decifrar certos escritos atuais. Dias atrás, vibrou meu telefone com esta mensagem pelo WhatsApp (veja só): “Gilberto vc chegaste a falar cm”. Como, cara-pálida? Assim mesmo, uma composição cifrada à semelhança de um hieróglifo e parecença de frase. O textinho estrambótico (adjetivo cujo som já denuncia a esquicitice) foi gerado, certamente, pela desconcentração da pressa. Por consequência, a burundanga (está na cara a confusão) desconectou a linguagem da razão, nessa nova forma de digitar (falar). Minimalista pela falta de tempo e espaço, e despreocupado com a fonte original. Diante da corrente irrefreável, o melhor a fazer pede humor e ironia como trazer à luz as belezas abandonadas no jardim da língua portuguesa, por exemplo. Mesmo com o risco parecer uma extravagância de um novo Policarpo Quaresma.
ILUSIONISMO. Maus governos criam “pautas positivas”. Fonte permanentes de más notícias, distorcem a jornalística “pauta” (sequência de temas a tratar em um jornal, revista, programa de rádio ou tevê”) no exercício do ilusionismo político. Sabem que a saturação de malfeitos leva à rejeição de notícias, mesmo aquelas de fontes confiáveis. Procuram ludibriar o cidadão que se prosta macambúzio, palavrão justo para a catatonia causada pela onipresença de idiotas, criminosos e bestas no dia a dia das mídias – inclua o corrupto em todas as (des) qualificações acima.
LIBERDADE. Na hora em que o país flerta perigosamente com um messias – à direita, à esquerda ou tocaiado em um canto qualquer –, revejo uma das hipóteses para a origem da palavra liberdade: “Transição do grego eleútherus para o latim liber, ambas de mesmo princípio: ‘nação, povo, membro não escravizado”. Inexplicável, mas inteligível em Romanceiro da Inconfidência, poema de Cecília Meireles:
“Liberdade esta palavra
Que o sonho humano alimenta
Que não há ninguém que
explique
E ninguém que não entenda.”
REDIVIVO. Por fim. “A língua é minha pátria”, escreveu Caetano Veloso, decano da Tropicália. O homem impedido de falar, ouvir e escrever o idioma pátrio é um expatriado e pode “morrer” de saudade. Banzo redivivo (jamais revitalizado), suave e mais sonoro.
VOCABULÁRIO
Banzo. Nostalgia patológica dos escravos negros africanos levados para longe de sua terra.
Burundanga. Linguagem confusa.
Decano. Que ou aquele que é mais antigo em uma coletividade.
Estrambótico. Que é estranho, pouco convencional, esquisito.
Macambúzio. Que ou quem não mostra alegria ou tem tendência a se isolar.
A última flor é a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim vulgar falado no Lácio, Itália.
“Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…”
Verso do poema Língua Portuguesa,
escrito por Olavo Bilac, poeta parnasiano

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