Debaixo da  Fantasia

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Debaixo da Fantasia

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Sábado, dia 10, o horário no bilhete marcava 23h para abertura dos por­tões do Clube Tiro e Caça. Mas, a cidade respirava o clima mágico de festa desde cedo. Ca­ravanas de turistas em carros e excursões desfilavam por ruas e avenidas.

Extravasar é a ordem, o culto ao corpo, um dos ingredientes. Ser um personagem de desta­que em meio à fantasia eram os requisitos. De maneira (in)cons­ciente, os festeiros extrapolam os limites sem medo da desaprova­ção social. Esta festa é para isso. A música embala o desejo. Alguns dançam e dançam. E assim per­manecem. Outros se embebem de substâncias, lícitas ou não. Os corpos se encostam. Na mesma velocidade se entrelaçam, se afas­tam.

A Festa à Fantasia de Lajea­do mexe com o imaginário dos mais jovens, que anseiam uma oportunidade para extravasar os hormônios. Romper a fita dos beijos, dos “amassos” e – quem sabe – culminar em uma expe­riência de sexo casual. Tudo mo­vido por muito álcool.

Antes das 18h, postos de ga­solina, bares e ruas, abriga­vam jovens que bebiam cerve­jas, caipiras e doses de whisky com energético. Embalados pelo funk, que estremecia os carros.

Nas proximidades do evento, ambulantes organizavam os pon­tos de venda. Alguns estavam ali desde antes do meio-dia. Em meio a tarde, flanelinhas faziam inven­tário das vagas para estacionar. O tour de force era admirável.

Em poucas horas, naquelas ruas desfilariam mescla de per­sonagens como: super-heróis, humoristas, apresentadores de tevê, serial killers – como um Dr. Hannibal Lecter, de “Silêncio dos Inocentes”. Ou Alexander DeLarge, do clássico Laranja Mecânica.

A passarela dará lugar a capi­tães Jack Sparrow, de andar trô­pego, se acotovelando com dan­çarinas francesas, enfermeiras, fadas, noivas, freiras e diabinhas. Fantasias curtas. Umas mais, outras menos. Mas, em essência, o jogo é mostrar o corpo, os atri­butos físicos. Tanto masculino, quanto feminino. Buscam o eró­tico, alcançam por vezes o mau gosto. Em outra, o grotesco.

Realizada desde 1991, a Festa à Fantasia se tornou parada obriga­tória para as mais diferentes tri­bos, sejam fãs do sertanejo, rock, techno ou pagode. Solteiros, “en­rolados” ou casados desfrutam de momentos de tolerância em nome da diversão em Lajeado.

Beijos e carinhos “calientes”

Antes da meia-noite, pró­ximo do palco principal, um dançarino do Clube das Mulhe­res, sem camisa, exibindo seus músculos, contabilizava sete beijos. Rolava um torneio.

Enquanto algumas meninas distribuíam abraços e beijos insinuantes, uma fada – de ca­belos pretos e lisos, olhos cla­ros e grandes, de aparelho nos dentes – se esquivava dos pre­tendentes.

Topava dançar, até mesmo uma conversa ao pé do ouvido, mas quando alguém avançava o sinal, pedia socorro às ami­gas. “Terminei meu namoro há pouco tempo. Não quero ficar com ninguém”, confidenciou.

Mesmo assim, o jovem que vestia um kilt (saia escocesa masculina) tentava. Insistiu por uns 15 minutos. Em vão. Deu de ombros, mas ganhou de consolo um beijo na bochecha. A festa recém tinha começado.

Beijo e sanduíche – Cenas dignas de filmes eróticos fize­ram parte da noite. Enquanto um garçom fantasiado beija a garota, um amigo fica às cos­tas da jovem, acariciando suas pernas e dando mordidinhas no pescoço dela. Sanduíche, em que o recheio principal tinha 46 quilos.

Próximo do trio, um jovem dentista procurava clientes. Na placa publicitária que segu­rava, anunciava o serviço da noite: “Examino línguas”. Pas­sava 30 minutos da meia-noite e o clima estava quente.

A “pegação” – As meninas reclamavam do avanço dos rapazes. “São uns chatos”, con­tava uma porto-alegrense com fantasia de policial, com direi­to a algemas e cassetetes.

Mas, sem esconder a disposi­ção ao encontro de lábios des­conhecidos, completa: “Se for chato e bonito, eu tolero. Não dá para aguentar chato e feio”. Logo depois ela estava agarra­da a outro dançarino sem ca­misa com gravata borboleta sobre o pescoço nu.

Perto das 3h11min, um ca­rioca, que hoje mora em Porto Alegre, com fantasia de pique­te montado em avestruz in­flável. Feliz da vida distribuía sorrisos e fazia a festa sozinho. Todos gostavam da fantasia dele, as meninas pediam fotos. “Cada foto é R$ 5 ou um beijo”, respondia o jovem, com idade próxima aos 23 anos. “Gordi­nhas, peguei umas 20. Outras três bem novinhas. As top fo­ram poucas”, confessa.

Ostentação e inveja

Os festeiros mais ricos se esbanjaram. Ami­gos reuniram algumas centenas de reais e alugaram por duas horas uma limusine. Pas­searam pelo centro com destaque, arrancan­do aplausos e vai.

No teto solar, com metade do corpo para fora, um general romano comandava a folia. Além dele, havia um fantasiado de cafetão, acompanhado pela namorada. O garoto fan­tástico Robbin – fiel companheiro do Batman – um anjo e mais dois com trajes típicos ale­mães fechavam o grupo seleto que chegou de limusine às 23h na festa.

Nas duas horas anteriores, enquanto des­filavam pela cidade, foram ovacionados e ofendidos. Invejados e admirados. Gritos par­tiam das calçadas. A caminho do bairro São Cristóvão, a comitiva vai ao encontro de belas senhoritas.

Ao pegar as garotas, antes de retornarem viagem ao “esquenta”, marcado para Estrela – perguntei ao motorista, dono da empresa de aluguel de limusines: “Duas horas. Isso vai dar R$1,2 mil?”. Antes dele responder, o gene­ral romano interrompe: “Nem sei. Não eram R$ 5 mil?”, mostrando desdém ao custo da brincadeira. a

Menos brigas e mais furtos

Muitos roubos. Celulares, car­teiras, câmeras digitais e di­nheiro eram os produtos mais visados. Os alvos mais fáceis eram bêbados ou mulheres so­zinhas.

Perto da 1h, duas mulheres de Caxias do Sul falavam aos seguranças da recepção que ha­viam sido furtadas. Os ladrões abriram a bolsa de uma delas. “Eram dois brancos, de cabeça raspada, sem fantasias”, contou a mulher. Levaram carteira de identidade, R$ 60 em dinheiro e celular. A festa havia perdido a graça antes da 1h.

Muito nervosas e chorando, as visitantes estavam pela primei­ra vez em Lajeado. A segurança que atendia as duas tirou da po­chete uma porção de carteiras de identidade. A festa tinha co­meçado havia duas horas, mas o número de cartões de crédito, de banco, habilitações e identida­des passavam de uma dezena.

Elas ficaram no mesmo lugar, na entrada da festa, esperando algum sinal dos itens furtados. Depois das 4h, as duas perce­beram dois sujeitos contanto dinheiro e rindo. Eram os mes­mos, que horas antes estavam próximos quando elas se deram conta do roubo. Chamaram os seguranças enquanto os dois tentavam deixar a festa.

Os dois foram presos em fla­grante. Nos bolsos dos suspei­tos, foram encontrados oito celulares, três câmeras digitais, além de R$ 330,15 em dinheiro. Encaminhados à guarda monta­da da Brigada Militar, que fazia a ronda nos estacionamentos e na entrada do evento, um dos ho­mens argumentava que os segu­ranças o agrediram. Também que o dinheiro lhe pertencia e os apa­relhos tinham sido comprados. “Chega de falar! Se não quem vai lhe dar umas porradas sou eu”, avisou o policial.

Travestis causam frenesi

A Festa à Fantasia não dá espaço para o preconceito ou caretices. Peitos siliconados de fora, nádegas à mostra escondendo calcinhas minúsculas. Os travestis causaram reações frenéticas, tanto em homens, quanto nas mulheres. Ao entrarem no banheiro feminino, o espanto ficou explícito nas faces das meninas que deixavam o toalete. “Chegaram nos menosprezando, dizendo que pegaram muitos caras na pista”, contou uma jovem que saía do local. Apenas de tapa sexo, uma travesti confessou: “Não paravam de pegar na minha bunda. Eu adorei!”

O fim antecipado da festa

Enquanto alguns se dedicavam a encontrar um beijo fugaz, outros exageravam na dose alcoólica. Como resultado, vômitos e fim de festa. Um bêbado estava sozinho. Foi abandonado pelos amigos. À 00h12min, dormia em uma cadeira próxima de uma das copas, à esquerda da pista principal.

Ele ficou lá, do mesmo jeito até as 4h. Mas, ele não foi o único. No ambiente onde tocava o country rock da Banda Bico Fino, um sambista, vestindo camiseta da Mangueira, escondia a cabeça dentro da gola.

Quando tentava erguer a cabeça, os olhos embriagados, perdidos no vazio, faziam tudo rodar. Virava o rosto para o lado e vomitava. O ritual se repetiu durante horas. O encontramos perto da 1h53min. Do mesmo jeito ele ficou até o fim da festa, lá pelas 6h.

Entrevista

“E uma das festas mais lindas da região”

Jornal A Hora – Por que as pessoas buscam essa extravagância?

José Katz – Sigmund Freud já dizia: a pior das realidades é a melhor das fantasias. Muitos montam uma fantasia de algo que nunca teriam na realidade, usam-na como se fosse a própria realidade. Enlouquecem com a possibilidade de ser um personagem. É a possível capacidade de estar endeusado. Precisam da fantasia para que não vejam o seu rosto.

Alguns começam a beber pelas 10h e quando chegam na festa não têm condições de ficar com alguém, pois já chegam passando mal. É perigoso para a sociedade. Muitos podem se matar com o carro. Mesmo sabendo que é uma fantasia, usam o exibicionismo, pois é melhor ter aquilo do que não ter nada. Não existe o permanente. Há uma falsificação da realidade. Muitos não suportam a ideia de que a fantasia não é uma realidade. Então se enchem de drogas e de álcool. Na realidade não tem diversão: são jogos de guerra.

A Hora – E quando a festa termina?

José Katz – É como no carnaval do Rio de Janeiro, que apresenta algumas mulheres no mais alto carro alegórico, mas elas não são anjos caídos. Quando tudo termina, voltam à realidade. Como a paixão. Essa menina ou esse menino vai salvar a minha vida, mas depois de três meses descobrem que não era isso. Quando acaba o carnaval, tem um ano inteiro pela frente, alguns uma vida toda. As máscaras caem e ninguém quer ser elas. Se frustram quando veem a realidade e começam a se destruir.

É bom ter um momento de fuga, quando as pessoas sabem o limite. Apesar de todos os desdéns e quebra de costumes, é uma das festas mais lindas da região, pois mexe com o imaginário e a criatividade. Isso faz parte da felicidade, que se mistura com a própria solidão, no fim da festa.

Da euforia à exaustão

Com os primeiros raios de sol de domingo, os festeiros foram se dispersando. A vida voltava ao normal. Os personagens fantásticos estavam extenuados. Meninas de pés descalços seguravam os sapatos e sandálias de salto. Era 6h46min e alguns ainda mostravam pique para mais e dançavam ao som dos carros estacionados.

Porém, a grande maioria sentava nas calçadas, tomava água e refrigerantes, comia cachorro-quente e churrasquinho. Eram quase 8h, o sol estava alto no céu. As turmas relembravam os fatos da folia.

Uma mulher de Porto Alegre teve de ser carregada. Sem ter forças para se mexer, reclamando de fortes dores nas costas, desabou no asfalto, o que causou gargalhadas naqueles que estavam próximos.

Era o fim da festa. Agora não mais, só no ano que vem.

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