Um ano após a maior catástrofe climática da história do RS, moradores do bairro Campestre vivem sob o peso do medo, da insegurança e de profundas marcas emocionais e materiais. Se em setembro de 2023, quando 14 famílias foram atingidas pelas águas do Rio Forqueta, a situação já era considerada dramática, piorou em maio do ano passado. O número subiu drasticamente.
Ao todo, 69 famílias da região baixa do Campestre foram impactadas diretamente com a rápida subida do Forqueta. São pessoas que perderam casas, móveis, histórias e, em muitos casos, a esperança de seguir no lugar onde construíram a vida. Diversas moradias foram condenadas pela Defesa Civil e não devem ser reocupadas.
Deise de Paula mora há quase seis anos no Campestre com o marido e a filha de 20 anos. Desde 2020, a família enfrenta sucessivas enchentes, sendo a maior parte delas de pequeno porte. Mas a de maio de 2024 foi devastadora. “A água passou mais de dois metros do telhado da casa. Era lama grossa, mau cheiro, uma cena que jamais imaginamos viver. Perdemos tudo”, relata.
A moradia da família é financiada pela Caixa Econômica Federal. Mesmo depois de tantas perdas, não há para onde ir. “Não temos mais nada, nem fotos da nossa história. Vivemos do que ganhamos de doações e da ajuda da igreja e da empresa onde trabalho. Cada chuva é um desespero.”
A ajuda, segundo ela, veio da associação de moradores e dos próprios vizinhos. “Chamamos a
Defesa Civil, mas não conseguimos contato. Quem esteve com a gente foram os vizinhos e o Vavá [vereador e líder comunitário], que nos ajudou a retirar os móveis. Ninguém acreditava que podia acontecer o que aconteceu.”
“Deixamos uma vida para trás”
Santina Maria Blau, 43, agente comunitária de saúde, mora no Campestre há 15 anos. Nunca imaginou que veria sua casa cercada por água. “A de setembro já assustou. A de maio destruiu. Voltar e ver vizinhos saindo de barco, com uma sacola na mão, todos chorando. Foi uma sensação de impotência. Muito triste.”
Um ano após a maior enchente, Santina diz que o sentimento no bairro é de abandono. “Não houve nenhuma reunião com os atingidos, nenhum plano foi discutido, nenhuma sirene instalada, nenhum grupo treinado. A gente sente que, se acontecer de novo, vai ser do mesmo jeito ou até pior.”
A nova ponte da ERS-130, construída com cabeceiras elevadas, também é vista com receio. “Dizem que vai demorar muitos anos para acontecer outra cheia, mas isso ninguém pode garantir. A sensação é que esqueceram do Campestre.”
Santina e sua família também avaliam deixar o bairro. “Mas é difícil. A casa está quase quitada. A gente comprou com muito sacrifício, e agora não sabemos o que fazer. Muitos vizinhos estão vendendo por preços irrisórios, tentando sair para buscar uma vida melhor.”
Esperança e resistência comunitária
Apesar da dor, do cansaço e do medo constante, o que ainda resiste no bairro Campestre é a união dos moradores. “Somos muito unidos. Um ajuda o outro. Teve mudança para tudo que é lado, vizinho ajudando vizinho”, destaca Deise.
A comunidade cobra ações concretas, como a implantação da sirene de alerta, a organização de rotas de fuga e a criação de um plano efetivo de evacuação. Enquanto isso, seguem vivendo entre o que restou e o receio de novas perdas.
“Não é vida para ninguém”, resume Deise. “A gente sonha com tudo que passou. Água entrando, pessoas de afogando, o desespero. É um trauma que não passa.”

Crédito: Arquivo Pessoal

Após a cheia, processo de limpeza foi lento e difícil / Crédito: Arquivo Pessoal
Bairro assustado
Para o presidente da Associação de Moradores do Campestre e vereador, Jones Vavá, a sensação predominante é a de apreensão. “Foi algo que nunca tinha acontecido. A de maio foi muito pior. O bairro ainda está assustado porque não sabemos o que pode acontecer se chover forte novamente”, relata.
Segundo ele, apesar de algumas medidas pontuais, como a instalação de uma régua digital na ponte de Ferro para monitoramento do nível do Rio Forqueta, a comunidade ainda aguarda ações mais concretas.
Uma demanda urgente citada por ele é a criação de uma rota de fuga para os moradores da parte baixa do Campestre, onde sete ruas transversais ficam completamente ilhadas em caso de cheia. “É uma área particular, mas precisamos de uma saída de emergência, principalmente pensando em moradores acamados ou com dificuldades de locomoção.”
A associação, segundo o presidente, atuou intensamente durante e após as enchentes, oferecendo alimentos, transporte, material de limpeza e orientação sobre auxílios dos governos. Hoje, segue buscando junto ao poder público soluções duradouras, como um plano de evacuação e mais segurança para os moradores.
Núcleos comunitários
Formação e preparação de pessoas nos bairros para atuação preventiva e resposta em eventuais episódios de enchentes. Estratégia encabeçada pela Defesa Civil de Lajeado a partir da implementação de núcleos comunitários. O trabalho está em execução e a projeção é de que as equipes estejam formadas até o fim do semestre.
O Campestre é um dos bairros aptos a estruturação do núcleo. Embora tenha um número menor de residências atingidas em relação a outras localidades da cidade, a ideia é contar com lideranças prontas para auxiliar em casos de crises por eventos climáticos, como enchentes.

Moradias já haviam sido afetadas pela enchente de setembro de 2023 / Crédito: Arquivo Pessoal
“Essas pessoas conhecem bem as comunidades, sabem quais são os vizinhos mais vulneráveis. Dentro disso, podem auxiliar em ações como retirada de famílias e resgates, quando necessário”, salienta o coordenador da Defesa Civil, Luís Marcelo Gonçalves Maya. Após a formação dos núcleos, a ideia, segundo ele, é promover atividades de orientação com toda a comunidade.
Quanto às rotas de fuga, lembra que é o principal pedido dos moradores do bairro, junto com a instalação de uma régua no Forqueta e o desassoreamento do rio. “Esse caminho alternativo é um pouco mais complicado, pois o município vai ter que fazer desapropriações antes de executar”, comenta.
CENTRO REGIONAL
No ápice da resposta à crise gerada por conta da inundação de 2024, o bairro Campestre teve importante papel. Foi na sede do Esporte Clube União Campestre que a Defesa Civil do RS instalou o Centro Regional de Doações. Centenas de voluntários auxiliaram no trabalho de recebimento, separação e organização de doações, como cesta básica, comida pronta, fardos de água mineral, kits de higiene pessoal e produtos de limpeza.