150 anos da imigração: um legado de fé e perseverança

HERANÇA ITALIANA

150 anos da imigração: um legado de fé e perseverança

O marco da vinda dos imigrantes italianos ao estado é 20 de maio de 1875. Passado um século e meio, região celebra essa história, que ainda se mantém na cultura, na gastronomia e na fé

150 anos da imigração: um legado de fé e perseverança
Maria e Roque Pezzi mantêm o Moinho Colonial, em Vespasiano Corrêa, com a história da farinha de milho e um típico café colonial. (Fotos: Bibiana Faleiro)
Estado

A busca por uma vida melhor na América, mesmo diante da incerteza do que encontrariam do outro lado do oceano, foi o que motivou a vinda dos primeiros imigrantes italianos ao Rio Grande do Sul. Em 20 de maio de 1875, saíram da terra natal com poucos pertences para recomeçar a vida nas novas colônias e, 150 anos depois, o Vale do Taquari ainda vive suas heranças.

Naquele tempo, foi a grave crise que a Itália enfrentava que motivou a emigração de milhões de habitantes, em especial, entre as camadas mais pobres da população. A viagem de navio levava entre 40 e 50 dias, com destino ao porto de Porto Alegre.

Quando chegavam em terras gaúchas, os imigrantes eram transportados em carroças ou iam a pé até seus lotes coloniais. Depois de uma viagem transatlântica em navios superlotados e em condições precárias, esses imigrantes encontraram no estado uma realidade dura. Iniciaram a colonização nas partes mais altas do território, onde prosperaram em meio às tradições que se mantêm ainda hoje.

Passados 150 anos, o legado da imigração italiana é visto na gastronomia, na cultura e na religião que, por décadas, foi o alicerce das primeiras comunidades ítalo-brasileiras.

Roque Pezzi

Primeiros imigrantes

De acordo com a doutora em ciências, ambiente e desenvolvimento e professora, Janaíne Trombini, os primeiros imigrantes do Vale foram João Batista Lucca, Antônio Bratti e outras 15 famílias, vindas de San Pietro Valdastico para a colônia de Encantado, em 1882. Entre elas, as de sobrenome Fontana, Secchi e Bertozzi.

No início, o governo brasileiro dava subsídio de estadia, alimentação e ferramentas para o trabalho. Feijão, milho, trigo, porco e erva-mate eram as principais produções naquele tempo.

Em terras brasileiras, os imigrantes mantiveram os costumes da terra natal, mas também passaram a cultivar e alimentar-se de novas culturas, além de utilizarem técnicas para o preparo da terra aprendidas com quem já vivia no país.

Farinha e polenta

Famílias da região ainda preservam essas origens. Entre elas, a família Pezzi, que mantém um estabelecimento centenário em Vespasiano Corrêa. É no local que fica um dos únicos moinhos ainda em funcionamento no Vale, o “Moinho Colonial”, de 1920.

Além de ainda moer o milho para a produção de farinha, a estrutura virou ponto turístico e atrai visitantes para conhecerem a história e degustarem um café colonial típico italiano. O moinho está na família desde 1968.

Roque Afonso Pezzi, 79, está à frente do negócio desde 1976, quando comprou o empreendimento do pai. Ainda hoje, o processo artesanal da farinha é preservado na propriedade. Uma roda d’água movimenta outras três menores que impulsionam a trituração do milho. O produto é peneirado dentro do complexo e a farinha é separada do farelo, que é destinado aos animais.

“Lembro que atendíamos mais de 600 famílias naquele tempo, a farinha de milho era muito importante aqui na colônia. Era polenta de manhã, de tarde e de noite”, brinca Roque.

O milho é o ingrediente principal da polenta, prato típico italiano. A esposa de Roque, Maria Minusculi Pezzi, 72, também lembra dos antigos costumes. Entre as tradições italianas que mais foram preservadas, cita a gastronomia. “O que mais ficou foi a polenta, não falta nenhum dia”, comenta. Além disso, o grostoli, também conhecido como calça virada, é considerado um prato típico.

Hoje, a família Pezzi celebra essas tradições por meio do café colonial oferecido aos turistas. “Faz pouco mais de 20 anos que decidimos abrir o moinho para o turismo”, comenta Roque. É Maria quem organiza o café e prepara os alimentos: polenta brustolada, grostoli, além de bolachas e bolos.

Preservar a cultura

Vestimentas, utensílios domésticos, pequenos santos e itens da lavoura são algumas das heranças culturais que os italianos deixaram na região e que ainda fazem parte das recordações de famílias do Vale. Alguns deles mostram como eram as relações de trabalho, o dia a dia nas casas e a alimentação, e estão expostos na Casa de Cultura de Lajeado, até o fim do mês.

Cada objeto pertence a algum dos integrantes da Società Taliana Tutti Fratelli, cujos associados, de origem italiana, preservam essa história da imigração. Entre eles, está Lisandra Brunetto. Ela ressalta que o papel do grupo é resgatar tradições e fazer com que elas se perpetuem.

Exposição promovida pela Società Taliana Tutti Fratelli, resgata vestimentas, objetos e costumes da imigração

“Quando os imigrantes chegaram aqui, não era aquilo que o governo prometeu. Tiveram que desbravar tudo. Muitos vieram para cá trazendo algumas sementes, algumas raízes, ferramentas, eles foram aos poucos se estabelecendo”. Lisandra ainda cita todo o conhecimento trazido da Itália, além da esperança e da fé.

Entre os itens curiosos da exposição, está uma mantegueira, além de um objeto de ferro utilizado para esquentar os pés das mulheres no inverno. “Eles colocavam umas brasas dentro e, por cima, outra chapa vazada que permite sair o calor”, destaca a secretária da Tutti Fratelli, Mártires Valandro.

Ela também cita os garrafões para armazenar o vinho, bebida tradicional do italiano. Os imigrantes cultivavam a uva para a produção e a bebida era guardada nos porões de um ano para o outro. O vinho era consumido diariamente, em especial, para acompanhar a polenta.

Fé nos capitéis

Dentro das igrejas, capelas e capitéis, a religiosidade dos imigrantes italianos fica em evidência. Muitas dessas estruturas surgiram como pequenos oratórios à beira das estradas, feitos de madeira ou pedra, símbolos da fé dos que cruzaram o oceano em busca de uma nova vida no local.

Em Relvado, essa religiosidade é perpetuada por meio do Caminho da Fé e Devoção. O projeto une espiritualidade, memórias e integração com a natureza, e interliga a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes ao Memorial Dom Gentil Delazari.

O Memorial Dom Gentil Delazari é um dos atrativos de Relvado que carrega a história de fé da imigração. (Foto: arquivo a hora)

Presidente da Associação Caminho da Fé, Odete Araldi afirma que o objetivo do percurso é resgatar a religiosidade de 24 comunidades, representadas por um capitel com a imagem do santo padroeiro de cada uma, além de um totem com informações sobre o santo e sobre a história da colonização.

O formato dos capitéis reproduz aqueles do norte da Itália, construídos no alto das montanhas, local onde eram levados os rebanhos de ovelhas para pastagem.

“Os locais onde eram construídos os capitéis, também durante a guerra, passaram a ser o lugar onde os soldados faziam paradas breves para pedir proteção e se alimentar”, destaca Odete. Mais tarde, surgiram as capelas e igrejas, erguidas de forma voluntária pelos moradores dos povoados.

Contextos da imigração italiana

O antigo moinho dos Pezzi foi construído em 1920 e está na família há mais de 50 anos

Na Itália – Na segunda metade do século XIX, o país passava pelo processo de unificação dos antigos reinos independentes, somado à revolução industrial e ao aumento da população. Com a ida de grande parte dos camponeses para as cidades, essas se tornaram superpopulosas e as fábricas não conseguiram absorver toda a mão de obra. Uma crise econômica castigava os mais pobres, com a fome e epidemias, tornando a emigração para novas terras uma alternativa. A narrativa de uma terra prometida, com a abundância de comida e a possibilidade de ter terras próprias, incentivou a vinda de milhões para as Américas.

No Brasil – A atração de imigrantes europeus ao país tinha iniciado em 1924, com a chegada dos primeiros germânicos. O intuito era povoar a parte meridional do território e branquear a população. Entretanto, a imigração alemã passou a diminuir de ritmo a partir dos anos 1870. A alternativa, então, foi incentivar a vinda dos italianos. A abolição da escravatura estava em curso e garantir mão de obra para as lavouras de café se tornou essencial. Assim, os primeiros imigrantes italianos foram conduzidos às fazendas cafeeiras de São Paulo e os demais para as colônias, em especial, no Rio Grande do Sul.

No RS – O marco da imigração italiana no estado é 20 de maio de 1875, quando os primeiros imigrantes chegaram a Nova Milano, atual cidade de Farroupilha. As primeiras colônias criadas pelo império foram Dona Isabel (Bento Gonçalves) e Conde d’Edu (Garibaldi). A maioria dos imigrantes que vieram ao RS deixaram o norte da Itália, das regiões da Lombardia, do Vêneto e Tirol.

No Vale do Taquari – Quando chegaram ao estado, as regiões dos vales já estavam ocupadas pelas colônias germânicas. Coube, então, aos italianos as partes mais altas, entre os vales do rio Caí e do rio das Antas. Aqui, os primeiros assentamentos italianos se deram na Colônia de Encantado, datada de 1882, que depois deu origem a várias outras cidades da Região Alta. Famílias também seguiram para territórios da Colônia de Conventos (Lajeado), como os atuais municípios de Progresso, Sério e Pouso Novo.

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