Passado um ano das enchentes históricas que devastaram o Vale do Taquari em 2023 e 2024, nenhuma moradia foi construída pelos governos federal ou estadual às vítimas da tragédia. Embora mais de 5,7 mil residências estejam cadastradas em programas de reconstrução ou compra, como o Minha Casa Minha Vida Calamidade e o Compra Assistida, até agora o movimento mais efetivo foi da iniciativa privada.
Diante do cenário, a comunidade atingida ainda vive de forma improvisada, em moradias temporárias ou pagam aluguel. Do total de programas em andamento, são 219 moradias por projetos de doação da iniciativa privada. De ordem federal, são 300 casas repassadas aos moradores pelo programa Compra Assistida. Conforme dados oficiais, há 600 processos em liberação.
Um bairro abandonado
Cerca de 65% da população de Arroio do Meio foi atingida pelas enchentes, que causaram estragos significativos no comércio, nas lavouras e nas estradas. Uma placa à beira do rio revela a dimensão da tragédia: 13 mil pessoas foram afetadas na cidade. Diante desse cenário, a prioridade é estruturar um plano de moradia para os desalojados.
Um bairro se destaca pelo lamento dos poucos moradores. O bairro Navegantes parece ter parado no tempo. Um ano depois da maior enchente da história da região, as ruas movimentadas já não existem. O mato cresce entre as casas destruídas, invadindo terrenos onde antes havia lares, comércios e memórias.

Solagne Nunes é uma das poucas que voltaram ao bairro Navegantes, e,m Arroio do Meio. Reside com o marido, cinco familiares e os animais
Moradora da localidade, Solange Nunes é uma das poucas que voltaram. “Aluguei outra casa no bairro porque em outros lugares o aluguel estava muito alto”, explica. Ela mora com o marido e mais cinco familiares. Nos últimos meses, enterrou a sogra e a mãe. À noite, a escuridão do bairro abandonado lhe causa temor. As luzes dos postes estão queimadas.
“Essa era uma rua bonita e colorida. Hoje, paro na frente e fico triste.” O neto disse: “Vó, não vamos mais passear no bairro, porque é muito triste ver isso”. Ela concorda, parece um filme de guerra. Mas mantém a esperança, porque acha que esse é o último sentimento que morre. “Nos próximos cinco anos, acho que o cotidiano vai mudar, melhorar”.
Arroio do Meio necessita de 700 moradias. Já foram viabilizadas mais de 300 unidades temporárias pelo Estado, Ministério Público e setor privado. A meta é também tirar do papel as 294 casas da Defesa Civil Nacional. A prefeitura considera 60% do Bairro Navegantes zona de arraste. Parte dele deve ser transformado em parque. Segundo o prefeito Sidnei Eckart, “apesar de todo o impacto da catástrofe, o município vem se recuperando, com indústria atuante”.
Sem ter onde ir
Mais de 80% da área urbana de Cruzeiro do Sul foi afetada. O Bairro Passo de Estrela foi levado pelas águas. A poeira levanta bruta da estrada, e gruda-se às árvores que, um dia, foram verdes. A vegetação cresce em terrenos baldios, que donos não visitam mais, nem acham jeito de vender.
O desastre foi semelhante na Vila Zwirtes. Moradora do bairro há 22 anos, Dalva Santos de Castro salvou os filhos e os cachorros. O marido foi o último a sair do imóvel. A família tentou alugar um sobrado, mas os altos preços dos aluguéis tornaram a experiência insustentável, forçando-os a retornar à Vila Zwirtes.

Dalva voltou com os filhos e os cachorros à Vila Zwirtes, mas relata o medo de viver no bairro abandonado
A escola da filha, a somente 100 metros de casa, foi destruída, restando somente camadas de lama nas salas de aula. Agora, a menina precisa pegar ônibus para estudar na Linha Primavera.
Dalva observa a vegetação densa que tomou conta dos terrenos vizinhos à sua casa, severamente danificada pela enchente. À noite, o medo de cobras a assombra, e no inverno, o temor de novas tempestades. “Não tenho mais vizinhos”, desabafa. Ela sente medo constante, especialmente durante as chuvas, quando monitora o rio e o tempo. “Eu não gosto mais de morar aqui.”
De casa quitada ao lar temporário
A água invadiu os telhados do Bairro Porto XV, de Encantado, em maio de 2024. O rio alcançou conjuntos residenciais que ainda estavam em construção, levando embora o lar de aposentados.
Sueli Franco, 57, havia quitado a casa que pagaria em 30 anos, em oito anos. Em abril do ano passado, havia concluído a última parcela. No mês seguinte, a enchente empurrou as portas e destruiu o sonho da casa própria. “A enchente me deixou só com a roupa do corpo”, conta. Mas ela não saiu do bairro, mudou-se para uma rua acima, em uma das poucas casas habitáveis de um residencial semi abandonado. “O dono que nos vendeu o residencial anterior deixou a gente ocupar este aqui. Só religamos a luz. Estamos aqui por enquanto.”
Sueli teme os furtos que têm acontecido nas áreas mais vulneráveis do Porto XV. O bairro convive com o roubo de fios, portas, janelas e madeira das casas. “Levaram até a porta do meu quarto”, relata. Ainda assim, planeja ficar. “Confio que a prefeitura libere para permanecermos. Não temos para onde ir.”
Uma parte do bairro, localizada em zona de risco, está totalmente desamparada. A vegetação alta aumenta a sensação de insegurança. Em uma das casas, uma inscrição feita à mão: “Não roube. Já estou sem nada.” O município desencoraja pessoas a permanecerem em áreas de risco. Mesmo assim, elas insistem em ficar. Não sabem aonde ir.
Pescador permanece às margens do rio
Já no bairro São Miguel, também em Cruzeiro do Sul, os telhados desabados são a imagem que perdura na cena do interior. Moradores voltam ao local, uma tentativa de recapturar a vida, o pouco que sobrou. O pescador Jorge Carlos do Couto reside há 60 na localidade, a 50 passos do Rio Taquari.
Quando o temporal atingiu com força a casa, ele quebrou o forro e se refugiou no telhado durante três dias. Sem comida, bebida e com frio, esperou por socorro enquanto via a tragédia se desenhar à sua frente. Após 72 horas, uma lancha de voluntários o auxiliou.
Da casa, sobrou um pedaço, que ele agora usa como cozinha e quarto. Não pensa em mudança. “Vou ficar. Não tenho condições de pagar aluguel em outro lugar.” Couto ainda retira o alimento do rio. Observa o entorno e salienta: “algumas pessoas começam a voltar”.
Raio X da região
- 5,7 mil residências cadastradas em programas de reconstrução ou compra
- 300 casas repassadas aos moradores pelo programa Compra Assistida
- 600 imóveis em liberação pelo governo federal
- 219 moradias por projetos de doação da iniciativa privada
Cidades com maior demanda por casas
- Estrela 1.377
- Cruzeiro do Sul 1.105
- Arroio do Meio 778
- Venâncio Aires 410
- Lajeado 395
- Encantado 280
- Taquari 364
- Roca Sales 338
- Muçum 320