No Vale do Taquari, a palavra “recomeço” deixou de ser conceito para se tornar prática cotidiana. Um ano depois das enchentes que deixaram cidades submersas, lares destruídos e vidas suspensas, o cenário de dor começa a dar espaço à reconstrução. Não apenas de casas ou igrejas, mas de confiança, em si mesmos, na terra e no futuro.
Ana Paula Machado Torres, 43, viu tudo de longe. No Acre, onde morava, acompanhou os relatos sobre a tragédia de maio de 2023 com olhos marejados e coração apertado. “A gente sente, mas de longe é impossível dimensionar”, diz.
Em abril deste ano, ela decidiu vir até o Vale. Não apenas para ver, mas para ficar. Caminhando pelas ruas do Bairro Marmitt, uma das áreas mais atingidas de Estrela, Ana Paula viu de perto o que antes só conhecia pela televisão. “Não é a mesma sensação. Aqui, a dor é palpável. É como se cada parede quebrada e cada casa coberta de mato ainda chorasse pela família que perdeu”, descreve.
Formada em pedagogia, Ana Paula busca uma oportunidade na área da educação. E, apesar da destruição ainda visível, o que enxerga por trás das janelas quebradas é futuro. “Há muita coisa a ser feita. E isso significa que há espaço para quem quer contribuir. Por mais que cidades estejam assim, existem oportunidades.”
Vida aos bairros
Essa percepção não é isolada. A reconstrução do Vale movimenta setores, reacende laços comunitários e atrai olhares de quem vê na região mais do que ruínas, mas também potencial. Prefeituras investem em infraestrutura, empresas buscam mão de obra, e instituições se mobilizam para restaurar não apenas prédios, mas também a vida que havia neles.
É o que acontece em Arroio do Ouro, interior de Estrela. Uma comunidade pequena, mas com uma fé gigante. A enchente levou 30 casas de moradores da localidade. A Igreja São Pedro Canísio também foi atingida, mas nem mesmo a água conseguiu apagar a fé do povo.
“A santinha de madeira foi arrastada até a porta, mas não saiu da igreja. A gente viu ali um sinal de que algo maior estava conosco”, conta Maria Elizabete Fell, ministra da Eucaristia. O templo foi tomado pela água, os 57 bancos foram parar no matagal, e as paredes ficaram cobertas de lama.
Mas bastaram alguns dias para que a comunidade se reunisse. Com enxadas, tratores e solidariedade, moradores, incluindo os jogadores do time de futebol local, foram ao encontro dos bancos perdidos e começaram a limpar o templo.
Hoje, a igreja está de pé. Paredes pintadas, chão refeito e novenas em andamento. “Estamos de volta”, afirma com orgulho o presidente da comunidade, Asterio Germano Fell. Ele estava dentro da igreja no momento em que a água chegou. “Parecia impossível que a gente fosse retomar. Mas retomamos. O primeiro kerb aconteceu em abril, e foi lindo. Era nossa forma de dizer: estamos vivos.”
O mesmo movimento de ressurreição se vê na creche da comunidade, reaberta também em abril. “A escolinha é o coração da nossa comunidade”, diz Asterio. “É onde os filhos crescem, os pais se encontram e a esperança se planta.”
Empresário abre negócios na orla
Aos poucos, as margens do Taquari também voltam a ganhar vida. Apesar do medo de uma nova tragédia, empresários voltam a investir no local e buscam formas de atrair novos fregueses.
Em Lajeado, essa realidade é vista na rua Oswaldo Aranha, local em que o empresário Jeferson Jair Bianchini abriu uma petiscaria, em um dos pontos mais atingidos pelas águas. O estabelecimento foi inaugurado em abril de 2025. Nico, como é chamado, acredita na recuperação do lugar. “Aqui é o melhor ponto da cidade. A beira do rio é muito legal”, atesta. Nico frequentava o antigo restaurante que foi mantido na estrutura durante 35 anos.
Hoje, serve porções, hambúrgueres e tábuas de frios. O empresário investiu na pintura, colocou móveis e reorganizou o ambiente. “Dizem que sou corajoso, por ser uma zona de risco. Mas sempre fui batalhador e quero deixar algo aos meus filhos”, destaca.
O Vale do Taquari vive um processo de cura coletiva. E quem chega percebe isso no olhar de quem ficou.