Em uma década, o Vale do Taquari quase duplicou o número de famílias beneficiárias do Bolsa Família. Em 2013, eram 7.074 cadastradas no programa. Hoje, são 12.289. Se por um lado há aumento do assistencialismo, por outro há falta de mão de obra qualificada para preencher as vagas nas empresas. Na região, são pelo menos 419 postos de trabalho abertos, segundo a FGTAS/Sine.
As crises sanitárias e climáticas nos últimos anos contribuíram para o aumento de dependentes do Bolsa Família e de trabalhadores informais. A população desempregada, por vezes, também carece de qualificação exigida pelas empresas.
Diante dessa realidade, gestores públicos e assistentes sociais buscam aproximar a comunidade das oportunidades do mercado de trabalho. Em Venâncio Aires, a crescente demanda de setores produtivos locais, aliada à escassez de trabalhadores capacitados, tem gerado preocupações. No município, o vereador Tiago Quintana (PDT) destaca uma visita ativa a 608 homens cadastrados no Bolsa Família, com foco em atrair esses trabalhadores para o setor produtivo.
A cidade possui cerca de 3,8 mil famílias beneficiadas pelo programa social. Segundo o vereador, a informalidade tem sido uma escolha para muitos que buscam um extra, mas é necessário criar alternativas que ofereçam oportunidades de inserção formal no mercado.
“Os programas sociais são fundamentais, mas é preciso ter uma porta de saída. Muitos beneficiários do Bolsa Família acabam escolhendo a informalidade como uma forma de complementar a renda. Precisamos mostrar que existem alternativas no setor produtivo, com remuneração justa e oportunidades de crescimento profissional”, destaca Quintana. O assunto também rendeu audiência pública na câmara dos vereadores.
Incentivo e qualificação
Outro movimento é percebido em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. O prefeito, Diogo Segabinazzi Siqueira considera o modelo do Bolsa Família como um programa que deu certo há mais de 10 anos mas que, hoje, pode atrapalhar a produtividade dos municípios.
Ele defende o benefício para pessoas de baixa renda que tenham alguma dificuldade de ingressar no mercado de trabalho, mas acredita que, em especial, homens e mulheres solteiras em idade para trabalhar não deveriam depender do recurso do governo, e sim estarem inseridos nas empresas. Siqueira ainda defende a necessidade de incentivo e qualificação proporcionados pelo município.
“As pessoas já se deram conta de que o Bolsa Família não está funcionando. A gente está dando apenas o peixe para a pessoa mas não foi ensinado a pescar, esse é o grande problema desse programa assistencialista que se tornou uma bengala. Esses habitantes ficam dependentes do governo”.
O chefe do Executivo afirma já ser feito na cidade um trabalho neste sentido e Bento Gonçalves se tornou o município com menor número de famílias dependentes do programa, entre as cidades com mais de 100 mil habitantes do estado.
“A gente chega nas famílias, oferece emprego, ajuda a fazer o currículo, leva na entrevista e leva de volta para casa. É isso o que precisamos fazer. Se a pessoa tem condições de trabalhar, ela precisa trabalhar. Se não pode, a gente tem que entender o motivo e tentar auxiliar”.
Alternativas
Karen Cristina Duarte, 29, está na lista de quem recebe o Bolsa Família em Lajeado. Com um filho de 10 anos diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista, a moradora do São Cristóvão também recebe um auxílio à saúde e quase todo o valor dos dois programas é gasto para a medicação e terapias do menino.
Ela já procurou e tentou manter um emprego formal, mas a necessidade de acompanhar o filho de perto a impediu de continuar. Outra alternativa foi trabalhar de casa. A partir de um curso de corte e costura oferecido pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras), vende panos de prato e enfeites para datas comemorativas. Karen ganhou uma máquina de costura e, agora, pretende aprimorar o trabalho para garantir uma renda fixa.
Mudança cultural
Coordenadora do Cras Espaço da Cidadania, Fátima Luciane Machado reforça que o Bolsa Família é um benefício de transferência de renda para famílias em situação de vulnerabilidade social. Para receber o benefício, as famílias devem ter renda per capta inferior a R$ 218 e estar cadastrada no Cadastro Único do governo.
Segundo a profissional, as enchentes de setembro e maio fizeram com que pessoas que já haviam superado uma situação de vulnerabilidade necessitassem do benefício outra vez. Ainda, famílias que nunca haviam recebido o benefício também entraram para o cadastro. Antes de maio deste ano, eram 1,1 mil famílias com Bolsa Família, hoje, são 2,4 mil na cidade.
“Temos toda essa realidade e, em paralelo a isso, o mercado de trabalho com disponibilidade de vagas. O que precisamos entender é que muitas vezes uma família não se enquadra nas vagas oferecidas”, ressalta. A escolaridade, alfabetização e bairro de residência, em muitos casos, é impeditivo para que empresas contratem determinado funcionário.
O transporte público, horário e vagas nas creches também são obstáculos aos moradores que procuram emprego. Segundo Fátima, de 80 a 90% dos chefes de família que recebem o Bolsa Família são mulheres. Entre os motivos, está a necessidade delas cuidarem dos filhos, de idosos e garantirem educação e saúde aos demais componentes familiares.
“Muitas vezes há facilidade de vagas para os homens e menos para as mulheres, porque as mulheres têm essa situação de terem filhos, de terem que buscar na creche, serem responsáveis”. A assistente social afirma que, às vezes, elas não conseguem se adequar. Em outros casos, iniciam o processo de seleção e são excluídas em determinada etapa por conta desses fatores.
No município, garante, quem está apto a trabalhar é colocado em contato com as oportunidades e muitos casos são de sucesso. Por outro lado, Fátima comenta sobre outro fator que dificulta a inserção no mercado, ligada à uma cultura geracional que vive a partir dos benefícios do governo.
A profissional diz ser necessário um entendimento do valor do trabalho e de como isso vai ajudar a família a sair dessa situação de vulnerabilidade. “São gerações e gerações que passam para que as famílias possam romper um ciclo, seja de violência, de vulnerabilidade, de baixa escolaridade. Muitas vezes é difícil que entendam o valor do trabalho, da educação”.
A profissional destaca que o papel do Cras é auxiliar as famílias a buscarem sua autonomia. “Possibilitamos cursos de qualificação profissional, a retomada do estudo, fazer as provas do Eja, para que elas tenham condições de disputar as vagas também”.
Benefícios por cidade
Entrevista
Cíntia Agostini • Economista e Doutora em Desenvolvimento Regional
“É um programa que tem que pensar a saída”
Como avalia o Bolsa Família hoje?
O objetivo fundamental de um programa como esse deveria ser deixar de existir, a pessoa vai precisar temporariamente, e deve ser atendida com uma renda complementar, mas que a gente consiga construir um caminho de saída. Deveria dar condições das pessoas saírem da necessidade de atendimento e terem independência e autonomia. Isso é robusto, e talvez leve décadas, mas é o objetivo lá no final a ser construído. Precisamos oferecer qualificação profissional, melhoria na estrutura e equipamentos públicos, como creches, linhas de ônibus. Muitas dessas pessoas também são analfabetas.
Como percebe a realidade regional?
A cada crise que a gente passa, vemos um aumento de pessoas dependentes do Bolsa Família. Na pandemia, a renda que elas tinham deixou de existir, pararam de atender na informalidade ou formalidade e recorreram ao programa. Na enchente ocorreu a mesma coisa, houve um período de precarização das relações de trabalho, a gente volta a ter um aumento das famílias beneficiárias, uma situação que estamos vivenciando e que deve ser temporária.
Acredita que a falta de mão de obra e o Bolsa Família estão relacionados?
Não é uma relação direta entre beneficiários e falta de mão de obra. Porque parte destas famílias são pessoas com dificuldades físicas, motoras, com baixa qualificação, famílias lideradas por mães que precisam cuidar da família ou as famílias são vulnerabilizadas. Ainda tem um componente cultural de famílias que entendem que isso é suficiente, que isso dá condições delas viverem. Parte dessas pessoas a gente pode provocar a saída do programa, que também tem a ver com trabalho, qualificação, educação financeira, mas não quer dizer que de 2 mil beneficiários, por exemplo, todos estejam aptos. A necessidade dos negócios às vezes coloca uma dinâmica que essas pessoas não atendem também, então são vários fatores. Precisamos de empresas e negócios que consigam dar conta dessa estrutura, com condições e salários adequados. Precisamos compatibilizar a necessidade de mão de obra e as pessoas disponíveis para trabalhar.