A popularidade das apostas online coloca as bets no centro de uma discussão nacional. Conforme estimativa das plataformas, são mais de 30 milhões de usuários ativos. Para se ter uma ideia, esse mercado movimentou cerca de R$ 120 bilhões no ano passado.
“Temos uma falha na nossa programação neural, digamos assim. Nosso comportamento humano nos leva à busca de uma sensação de prazer. Essas casas de apostas exploram essa fragilidade, pois perdemos a racionalidade em busca da emoção pela recompensa”, adverte o médico cardiologista e precursor da neurolinguística no Brasil, Nelson Spritzer.
Na avaliação dele, o risco de criar um vício é muito elevado, inclusive comparável ao uso de drogas e de medicamentos controlados. “As pessoas começam a justificar a própria adicção, buscando dar razão para aquilo que estão fazendo. Muitos só percebem que estão doentes quando isso já interferiu na vida em família e no trabalho.”
Essa análise se consolida a partir de resultados da pesquisa “A relação dos inadimplentes com as apostas”, feita pela Serasa em parceria com o Instituto Opinion Box. Os dados foram apresentados na tarde de ontem e apontam que cinco em cada dez pessoas endividadas fizeram pelo menos uma aposta em plataformas digitais e 34% destas continuam.
Conforme o responsável pelo estudo, Fernando Gambaro, o impacto das bets tanto na economia quanto no orçamento das famílias se tornou uma preocupação no país. “Temos de olhar para esse tipo de aposta como uma opção de entretenimento. Mas a pesquisa nos trouxe outra realidade.”
Nos três estados do sul, o percentual de pessoas endividadas e que apostam como forma de quitar os débitos se aproxima dos 50%, percentual maior do que a média nacional de 44%.
De cada dez apostadores, dois dizem que as apostas online são a única opção para melhorar de vida. Para um dos fundadores do Instituto Opinion Box, Felipe Schepers, houve um crescimento exponencial no número de cadastrados nas plataformas e, quase na mesma proporção, também cresceram os índices de endividamento. “Não temos como fazer uma relação direta entre aposta e endividamento, mas essa curva se acentua com a presença desses players em campanhas de marketing e comunicação.”
Para ele, ter a esperança de ganhar mais dinheiro com apostas e melhorar de vida é uma armadilha. “As pessoas deixam de pagar a dívida e usam o dinheiro para jogar. Esse é um risco de ver a bola de neve aumentar.”
Entre junho de 2023 e junho deste ano, os jogadores do país perderam quase R$ 24 bilhões, é o que mostra diagnóstico feito pelo Banco Itaú. Pelos dados da Serasa, a maior parte dos apostadores afirma ter gasto até R$ 500 por mês em bets.
Embate jurídico
- O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o governo federal adote medidas para impedir que inscritos de programas sociais usem dinheiro destes benefícios em apostas online.
- A decisão do ministro Luiz Fux exige a criação de “medidas imediatas de proteção especial” para evitar que recursos de programas como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) sejam usados em apostas online.
- Além disso, também proíbe a publicidade de sites de apostas voltada para crianças e adolescentes.
- O STF realizou audiências públicas para discutir os impactos das apostas online, incluindo endividamento, vício em jogo e lavagem de dinheiro.
- As medidas determinadas por Fux têm efeito imediato, mas ainda precisam ser analisadas pelo conjunto de ministros do STF para uma decisão final.
Resumo da pesquisa
- Na região sul, 49,6% dos endividados apostaram em bets para quitar dívidas;
- No país, percentual é de 44%
- Entre os que apostam, 58% jogam há menos de dois anos.
- 56% têm receio de acabar viciado.
- 52% admitem que perderam mais dinheiro do que ganharam.
- 29% dos endividados começaram a apostar em busca de dinheiro rápido e 27% procuravam uma renda extra.
- 10% dos apostadores revelam que já fizeram empréstimos para jogar.
- 13% afirmam ter deixado de “pagar outras contas” para fazer apostas.
- 57% não estavam endividados quando começaram a apostar
Histórico
- As apostas esportivas começaram a ganhar popularidade no Brasil na década de 1930, com os cassinos e as corridas de cavalos.
- Em dezembro de 2018 as apostas esportivas foram autorizadas com a Lei nº 13.756. Essa regra permitiu que empresas nacionais e internacionais operassem no país.
- Em 2023, iniciou a regulamentação das casas de aposta. O Ministério da Fazenda foi encarregado de regular o setor, criando a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF).
- No mesmo ano, a Câmara dos deputados aprovou a regulamentação das apostas esportivas online, estabelecendo tributações e medidas de prevenção a fraudes.
- O processo de regulamentação está em andamento, com a previsão de entrada em vigor das novas regras em janeiro de 2025.
- Hoje são 205 bets estão autorizadas a operar, pertencentes a 93 empresas. Além disso, 18 sites têm autorização para atuar em nível estadual.
Entrevista
Nelson Spritzer • médico, especialista em neurolinguística
“Não dá para viver de loteria”
A Hora – Qual o impacto das apostas na mente das pessoas?
Nelson Spritzer – Fomos criados com mecanismos de adaptação ao ambiente. Nossa genética, nossa evolução para sobreviver sempre mediu esforço e recompensa. Quando sentimos prazer, queremos repetir aquele esforço. É como no adestramento de cães, por exemplo. Quando queremos que o animal repita determinado comportamento, damos a ele um biscoito. Nas pessoas é algo semelhante.
Nos nossos neurotransmissores temos a dopamina, responsável por nos dar a sensação de prazer. Quando vamos para uma máquina, apontamos um botão, tem barulhos, imagens, mensagens, faz com que tenhamos um fluxo dessa substância. Quando falta, buscamos mais.
Assim criamos o vício. Podemos perder dez, 20 ou 50 vezes, mas vamos manter esse comportamento. As apostas, não só as bets, pode ser no casino, nas corridas de cavalos, ou outras, estamos correndo um risco de perder a nossa racionalidade em busca dessa emoção, desse prazer da recompensa.
– Qual o risco de desenvolver o vício nas apostas?
Spritzer – Muito grande. O mecanismo das bets tem uma lógica comercial e de marketing gigantescas. Isso é muito perigoso, pois explora a nossa falha, o nosso “bug” da programação mental. As plataformas lhe dão créditos de graça, lhe dando uma impressão de que não perdeu nada. Quando vê, o inconsciente toma conta e as pessoas viram zumbis. Vão queimar as reservas financeiras em um comportamento repetitivo. Você vai ganhar algumas, mas se colocar na balança, vai pagar mais.
– Existe como ter equilíbrio no mundo das apostas?
Spritzer – Há pessoas que conseguem ter um limite. É como ir em uma festa. Alguns chegam em um ponto e param de beber. Outros continuam até cair. O mesmo com relação ao uso de drogas ou de remédios controlados.
O fato é que temos um apelo muito grande sobre ganhar dinheiro de maneira rápida e sem esforço. Esse é um risco, quando vemos pessoas que adotam as apostas como forma de vida, como se fosse uma profissão.
Isso não é possível. Vamos viver de loteria? Não dá para viver de loteria. Pode até ter algum sucesso, mas o método atual é a banca ganhar. Para ter uma relação equilibrada, saudável com as apostas, a resposta está dentro de cada um. Porém, isso está virando um problema na sociedade. Estamos vendo que as pessoas estão muito vulneráveis, inclusive com casos de adoecimento.
– Sobre essa vulnerabilidade das pessoas, como protegê-las?
Spritzer – São necessárias ações reguladoras do próprio governo. Quando se permite a exploração dos jogos de azar, é necessário estabelecer formas de proteção. A maioria das pessoas está suscetível ao grande aparato midiático das bets. É preciso impedir abusos, seja com um controle de quando está sendo gasto, ou mesmo com uma barreira para as pessoas não virarem dependentes.
Na sociedade atual, de busca pelo imediatismo, há muito apelo pelo dinheiro fácil. Para as casas de apostas online, elas ganham mais dinheiro não em quem aposta muito, mas em muitas pessoas apostando pouco. Imagina só, se cada um apostar R$ 100 por mês, multiplica isso pelo número de usuários. Estamos falando de milhões.