Neste ano, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, tornou-se oficialmente um feriado nacional. Mais do que uma homenagem a Zumbi dos Palmares, a data destaca a importância de reconhecer a história e o legado do povo negro, convidando o Brasil a enfrentar o racismo e construir uma sociedade mais justa e inclusiva.
Antes restrito a alguns estados, o feriado nacional foi instituído depois da promulgação de um decreto presidencial no fim de 2023. Para a professora da Univates, doutora em arqueologia, Neli Galarce Machado, a data também pode contribuir para diminuir a violência estrutural contra a população negra.
“Embora uma parcela da população considere o feriado desnecessário e, por vezes, sinta desconforto com sua existência, é justamente esse incômodo que evidencia o quanto o racismo estrutural ainda persiste em nossa sociedade”, afirma.
Contribuições culturais
O Dia da Consciência Negra serve como lembrança das manifestações culturais do povo negro e, mais do que isso, reconhece a influência desse povo em áreas como a medicina, a política e a luta por direitos.
Um exemplo, conforme explica a professora Neli, é a contribuição da medicina popular africana, fundamental para a sobrevivência, tanto da população escravizada, quanto dos próprios imigrantes europeus. “Muitos imigrantes não conheciam o ambiente e foram ensinados pelas pessoas negras a usar ervas e plantas medicinais para cura e tratamento de doenças. É um aspecto essencial da cultura negra que raramente recebe o devido reconhecimento”.
Presença no Vale
Embora existam grupos no Vale do Taquari dedicados a destacar e preservar a cultura negra, a visibilidade e as oportunidades oferecidas a esses grupos ainda são pequenas.
De acordo com o Censo de 2022, apenas 3,65% da população do Vale do Taquari se autodeclara negra. Encantado lidera entre os municípios da região, com 5,82% (1.336 pessoas), enquanto Lajeado ocupa a quinta posição, com 4,23% (3.965 pessoas). Por outro lado, municípios como Vespasiano Corrêa, Progresso e Travesseiro registram os menores percentuais de pessoas negras.
Os dados, no entanto, podem não revelar a realidade, uma vez que muitas pessoas negras e pardas ainda enfrentam barreiras para se identificarem como tais. “Historicamente, os dados eram ainda mais subnotificados, refletindo a pressão social e o estigma racial que levam muitos a optarem por não se declararem como negros. O racismo velado ou explícito cria um ambiente hostil, que inibe a afirmação identitária”, comenta Neli.
A professora reforça que o caminho ainda é longo, e defende um futuro em que terreiros de umbanda, por exemplo, estejam localizados em áreas de fácil acesso e integração, em que crianças negras possam ocupar espaços nas salas de aula das maiores escolas, e que jovens negros tenham presença significativa nas universidades.
A luta continua
Em Lajeado, um dos movimentos que luta por esses direitos é o Grupo de Cultura Afro Black. Coordenadora da iniciativa, Camila da Silva Marques reforça a importância do 20 de novembro como um momento de reflexão. “É um reconhecimento do país, daquela era que a gente sofreu, do tempo de escravidão. É um primeiro passo para deixar esse passado na história”, afirma.
Camila diz perceber avanços na região nos últimos anos, por meio do debate sobre igualdade, herança e respeito às diferenças. Um dos papéis do Grupo de Cultura Afro Black é levar a temática para as escolas e empoderar, em especial, crianças e jovens.
Ela afirma que escolas do Vale já trabalham a mitologia africana, por exemplo, entre outros movimentos. “É muito bom a gente começar a se incluir, começar a ter uma sociedade realmente igualitária, em que a gente discute os problemas da sociedade com todos aqueles que participam dela”.
Ela comemora, também, a eleição da professora Rosane Cardoso como vereadora, a primeira mulher negra da história de Lajeado a ocupar essa posição. Por outro lado, ainda defende a maior participação de negros em cargos políticos, administrativos e lideranças e sugere, inclusive, um sistema de cotas.
“Lajeado é imigrante. Então vamos colorir isso, trazer todo mundo para cá”, destaca. Para uma maior participação do povo negro nesses espaços, Camila diz ser necessário lutar, assim como foi feito para que o 20 de novembro se tornasse feriado nacional, com pessoas pretas trabalhando em lugares que ditam lei.
Inclusão e oportunidades
Entre os desafios daqui pra frente, Camila cita o trabalho na educação como principal fonte de transformação. Ela destaca a necessidade de materiais de apoio e instrução para que os professores consigam desenvolver um ensino diversificado.
A mobilidade urbana é outra reivindicação, já que a maior parte das comunidades negras está inserida em bairros periféricos. “A gente precisa que esse transporte chegue, que as pessoas ocupem os espaços públicos”, defende Camila.
Hoje, dois quilombos de Lajeado são reconhecidos pela Fundação Palmares, o Maria Carmem e o Unidos de Lajeado. Camila acredita na importância de um mapeamento dessas comunidades, para saber onde aportar políticas públicas. “A gente trabalha, tem CPF, a gente contribui, gasta. Então é preciso ter um olhar diferente para os locais onde estamos inseridos e dar oportunidades de participarmos da sociedade”.
Ela diz que o trabalho é lento, mas necessário.
Festa Afro
O feriado ainda é celebrado com uma programação especial na cidade, com a Festa Afro, que ocorre hoje, a partir das 10, no espaço Têca Eventos. O evento conta com palestra, roda de samba e de capoeira, apresentações de Escola de Samba, grupo de danças afro, e comida típica, além da venda do acarajé. As atividades são gratuitas e abertas à comunidade.
O público também pode conferir a exposição “Yabás”, com uma mostra fotográfica sobre a ancestralidade e o protagonismo da mulher afro-brasileira, na Casa de Cultura de Lajeado. “É costume que, no mês da Consciência Negra, a se reúna para refletir sobre várias questões que incomodam, sempre enfocando a luta do Zumbi dos Palmares”, destaca a presidente do Centro de Cultura Afro Brasileira, Lisete Teresinha Machado.
O feriado
- O Dia da Consciência Negra foi criado para celebrar a luta contra o racismo, a resistência dos povos negros à escravidão e refletir sobre as desigualdades raciais que persistem no Brasil.
- A data foi escolhida por coincidir com a data da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, símbolo da resistência e da luta pela liberdade.
- A data foi incluída no calendário oficial brasileiro em 2003, ano em que também se tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas.
- Em 2011, foi instituído oficialmente o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, com a definição do feriado a critério dos estados e municípios.
- Por meio de lei, em 2023, a data se tornou feriado nacional, que é colocado em prática a partir deste ano.
Quem foi Zumbi dos Palmares
- Zumbi dos Palmares foi um dos líderes do maior quilombo que já existiu no Brasil: o Quilombo dos Palmares.
- Nasceu em 1655, em Alagoas, região que abrigava o Quilombo dos Palmares. Era descendente de africanos trazidos como escravizados para o Brasil.
- Capturado ainda criança, foi entregue a um missionário português, aprendendo português, latim e os preceitos cristãos. Aos 15 anos, fugiu para Palmares, retomando sua identidade africana.
- Tornou-se líder do Quilombo dos Palmares, que chegou a abrigar milhares de pessoas, entre escravizados fugitivos, indígenas e outros marginalizados.
- Sob sua liderança, Palmares resistiu por décadas a ataques das forças coloniais. Zumbi simbolizava a luta contra a opressão e pela liberdade.
- É enxergado por muitos, hoje, como um dos símbolos de resistência e luta dos africanos contra sua escravização no contexto do Brasil colonial.
- Foi morto no dia 20 de novembro de 1695, depois que seu esconderijo foi denunciado.
- O dia de sua morte é celebrado como o Dia da Consciência Negra, homenageando a luta contra o racismo e a escravidão.