Quem vê a leveza com que a professora Clarice Hilgemann, 68, encara o dia a dia, não imagina que, por trás do sorriso e do olhar cuidadoso com seus familiares e alunos, há uma história de superação. Em 2023, ela descobriu um câncer na bexiga e precisou adaptar-se à vida com uma bolsa de ostomia. Hoje, ela é uma das 400 mil pessoas no Brasil que contam com esse recurso para seguir em frente com qualidade de vida.
Foi ainda em 2022 que a vida de Clarice tomou um novo rumo. As frequentes infecções urinárias acarretaram em uma internação, pois o uso de antibióticos e corticóides já não eram suficientes para o tratamento. Além disso, algumas complicações afetaram até mesmo o seu pulmão. “Passei o ano novo no hospital e eles achavam que era Covid. Depois de alguns exames descobriu-se que se tratava de uma doença reumatológica”, conta.
Em meio ao tratamento, os médicos recomendaram uma série de novos exames. Foi quando uma ressonância e uma biópsia revelaram o tumor maligno no rim, em março de 2023. “O que vou fazer sem bexiga?” foi um dos primeiros questionamentos da professora. O urologista, porém, explicou que havia uma solução chamada bolsa de ostomia, que permitiria a Clarice continuar vivendo plenamente. “Só me restava encarar a situação. Então começaram os preparativos para iniciar um novo ciclo em minha vida”.
A bolsa de ostomia
Para colocar a bolsa de ostomia, é necessário realizar um procedimento cirúrgico na região abdominal a fim de criar uma abertura alternativa para a saída de fluidos corporais, como urina e fezes. Este orifício é chamado de estomia (ou ostomia) e se faz necessário quando parte dos sistemas respiratório, urinário ou digestivo não funcionam corretamente. Por isso, sua localização e tempo de permanência podem variar.
De acordo com a enfermeira, Angélica Hermes, existem as estomias de respiração (traqueostomia), de alimentação (gastrostomia e jejunostomia), de eliminação urinaria (urostomias) e as intestinais (ileostomias e colostomias). Clarice possui uma urostomia.
“Condições traumáticas ou patológicas podem gerar necessidade de uma estomia para a manutenção da vida. Doenças crônicas também são uma das causas da indicação de um ostoma, mas o câncer é uma das doenças mais frequentes com esta necessidade”, explica Angélica.
“Uma rotina normal”
No primeiro momento, Clarice revela que a adaptação com a bolsa de urostomia não foi fácil, pois tinha medo que a mesma fosse descolar do corpo ou vazasse. À medida que aprendeu a lidar com a bolsinha – como costuma chamar – pode retomar a sua vida normal, familiar e profissional. Hoje ela segue com as aulas no Colégio Martin Luther, vai a academia, faz seus passeios e viaja. “Consigo levar uma rotina normal, numa boa”.
Ainda sim, a professora revela que encontra desafios, pois nem todos os ambientes estão adaptados para atender as necessidades de um paciente ostomizado. “Nem sempre há banheiros em que posso realizar o devido esvaziamento e limpeza da bolsa coletora”.
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Desafios
Angélica e Clarice ressaltam que um dos maiores desafios enfrentados é o preconceito, tanto por parte dos pacientes, que lidam com a aceitação de seu próprio corpo, quanto pela sociedade, que vê o uso da estomia como algo distante da realidade cotidiana. Para muitos, discutir temas como urina e fezes ainda é um tabu, o que dificulta o diálogo e a compreensão sobre o uso das bolsas de ostomia.
“Por mais que a maioria das pessoas portadoras do ostoma se adaptem e levem uma rotina normal, a mudança no corpo e a adaptação com o material podem trazer momentos de medo ou angústia”, revela Angélica que ressalta a importância da rede de apoio familiar nos cuidados e de profissionais para auxílio e orientações sempre que necessário.
Sua mente em pauta
Em relação ao impacto emocional, quais são os principais desafios?
Penso que o principal é a questão da autoimagem, pois acaba sendo uma mudança importante e significativa para a pessoa. Podem surgir sentimentos de vergonha, inadequação desse novo corpo e também a própria perda da autonomia.
Não existe uma regra de como eles vão lidar com a ostomia. Nem todo paciente ostomizado vivencia um sentimento emocional, mas sabemos que há impactos e que precisamos prestar atenção nisso. Esse processo de aceitação não é de uma hora para outra. Cada pessoa tem a sua maneira, vai encontrar o seu recurso. Não existe uma receita de bolo, vai ser o tempo que a pessoa vai levar sobre ela mesma.
Que tipos de sentimentos ou medos costumam surgir durante o processo de aceitação?
A vergonha. Uma tendência grande que percebemos nesses pacientes é que elas tendem a se isolar devido aos impactos e adaptações, pois não se tem um controle sobre a evacuação. Isso pode causar vergonha. Uma coisa que é pouco falada e impacta diretamente é a questão do acesso. Como esse paciente vai esvaziar a bolsa de ostomia se não tiver um banheiro adaptado? Eles se privam de comer alguns alimentos, de sair de casa e conviver em espaços sociais, muito por conta dessas limitações.
E há também outros impactos que entram na questão da autoestima e sexualidade. A própria perda da independência e autonomia, porque muitas vezes o cuidado com a ostomia precisa de uma terceira pessoa, e isso pode gerar frustração, pois agora passam a depender mais de outras pessoas.
Quais conselhos são dados a uma pessoa recém-ostomizada que está se sentindo insegura ou receosa sobre o futuro?
Ele não precisa lidar com isso sozinho. A tendência do isolamento é muito grande, mas o ideal é que aconteça o contrário, que ele não se isole e procure os profissionais que estão envolvidos no cuidado. Não deixe de buscar ajuda, conversar com o médico e conversar sobre esses sentimentos. Esse processo não é fácil, mas pode ser menos sofrido.