Lá estava eu a admirar, pelo cristalino olhar da janela, o movimento frenético da metrópole e seus tipos humanos cosmopolitas e provincianos. Detive a visão naquele microcosmo: a rua dos jacarandás que, com a magnificência de suas frondosas árvores, compreendia em si as dilatações e contrações do tempo, o anonimato da noite e o desnudar do dia…Compreendia, de um só ângulo, a vida…A chuva passara naquela tarde, mas ainda se via uma gota de precipitação a descer, sem pressa, a superfície da janela. Seu movimento intercalava-se com as reentrâncias do vidro, parando e repousando uma aparente lágrima de autopiedade nos vincos das rugas que o tempo a tudo presenteia…No meu solilóquio consentido sentia a minha vida um tanto conectada com os demais passantes, irmãos de jornada, talvez elos de muitas existências…
Eu a olhar o mais intrigante movimento do mundo numa só visão do que o medo e a loucura transparecem como resultado de tudo aquilo que não é dito e sentido, até que ecloda no mais atroz dinamismo no ser humano. Assim era a janela, tão singela, mas ao mesmo tempo cruel na sua autoridade realista, a mostrar o que nem todos querem ver. Começo a me perguntar o porquê de tudo aquilo, de tanto sofrimento mundano numa vida aparentemente glamourizada na visão superficial de quem vê, mas não enxerga. Pela vidraça se viam todas as contrações de um mundo caótico com suas querelas e pequenezes maximizadas pelos contornos do vidro. Ele não esconde ou ilude. Corre solto a revelar o aparente indizível.
Com os meus dez anos de idade, não me convenço de que possa transpor a vidraça para compor também o quadro caótico do cotidiano. Mas sinto que há realidade há poucos passos de onde estou, uns homenzinhos revezando-se na arte de driblar medos e angústias, subtraindo da alma as querenças mais íntimas para não quebrar a engrenagem…Todos autômatos, porém reais partícipes da idiossincrasia humana. O abismo que nos separa não é o vácuo entre as gerações, mas a necessidade de estreitar laços com o mundo palpável e menos diáfano. Serei engolida também pelo algoz admoestador da sobrevivência – é inevitável. Incluir-me-ei entre suas presas, subjugada, oprimida e violentada, até restar-me apenas a carcaça de uma cavidade ventricular, a pulsar pelo regozijo do afeto aos seus pares…
A visão da vidraça fechada seduz-me mais do que a ideia de abri-la. Vou ficando, sem corpo, sem alma, tão-somente com olhos da janela da minha avó.