Pelo amor à cultura, tradicionalistas recuperam heranças do povo gaúcho

20 DE SETEMBRO

Pelo amor à cultura, tradicionalistas recuperam heranças do povo gaúcho

Neste feriado, instituições e empresários ligados às tradições gaúchas destacam a força da comunidade regional e as motivações para recomeçar após enchentes

Pelo amor à cultura, tradicionalistas recuperam heranças do povo gaúcho
Sem paredes e telhado, CTG Querência do Arroio do Meio já recebe tradicionalistas. (FOTOS: Bibiana Faleiro)
Vale do Taquari

Mais do que resgatar a história da Revolução Farroupilha e da luta dos farrapos pela independência e melhores condições à economia do estado, o 20 de setembro representa, hoje, superação. Pelo amor à cultura e necessidade de recomeçar, espaços que carregam o tradicionalismo se recuperam depois das tragédias climáticas e reforçam características do povo gaúcho, como coragem, resiliência e solidariedade.

A histórica Casa do Peixe é um retrato desse recomeço. A estrutura foi uma das poucas que permaneceram de pé após pelo menos três grandes enchentes no bairro Navegantes, em Arroio do Meio. Debaixo do lodo, aquela casa centenária resistiu e, com a bandeira do RS hasteada, virou símbolo de resistência, não apenas ao bairro, mas ao estado inteiro.

Depois de três reformas desde setembro de 2023, esta sexta-feira, 20 de setembro, marca a reabertura do estabelecimento, construído em 1907. O trabalho de reconstrução não tem apenas o negócio como objetivo, mas também busca manter tradições.

Casa do Peixe, que virou símbolo da reconstrução no RS, reabre nesta sexta-feira

Símbolo regional

Assim que as águas da enchente de maio baixaram, os proprietários Solange Beatriz de Oliveira Schneider, 65, e Darcísio Paulo Schneider, 65, iniciaram a reforma da estrutura. Eles contam que, quando surgiram conversas sobre abandonar o bairro, temiam que abrir o restaurante em outro endereço não seria a mesma coisa. Parte da história que foi criada às margens do rio iria embora com a mudança.

Assim, trataram de recuperar o piso, iluminação e pintura, além da cozinha e mobiliário. Com os ajustes, a casa está pronta para receber o público. A partir desta sexta, a tradicional sequência de peixes servida no estabelecimento volta aos horários habituais.

Cerca de 180 pessoas já confirmaram presença para a reabertura. Neste feriado, o atendimento foi dividido em três momentos, das 11h às 12h15min, das 12h15min às 13h30min, e a partir das 13h30min. No sábado, 21, o local também estará aberto. O atendimento é de segundas a sábados à noite e de terças à sábados ao meio dia.

Schneider ressalta que, apesar da reabertura, o restauro do prédio histórico continua e deve levar pelo menos um ano. A expectativa é fazer um pequeno evento de reinauguração assim que as obras finalizarem. “O governador [Eduardo Leite] disse que viria”, afirma o empresário.

Foi a partir de uma publicação de Leite nas redes sociais, com a imagem da Casa do Peixe e uma bandeira do estado que o estabelecimento viralizou. Schneider acredita que o movimento seja ainda maior a partir de agora. “Vem pessoas de tudo o que é lugar olhar a casa”.

Foi também por essa movimentação e por ter se transformado em um símbolo de resistência que o casal resolveu reabrir neste 20 de setembro. ”Essa bandeira foi colocada em um momento em que o RS estava muito para baixo”. A bandeira continua na fachada da casa, substituída por uma ainda maior.

Proprietário da Cabanha Infinita Pasión, Éder Leite busca alternativas para continuar a criação de cavalos crioulos. (Foto: DIVULGAÇÃO)

Ajuda para o recomeço

O CTG Querência do Arroio do Meio também representa a reconstrução. Com prejuízo que chega a R$ 400 mil após as cheias, o espaço ainda está sem telhado, além de paredes e galpões destruídos. Mesmo assim, a semana farroupilha deste ano foi organizada no espaço.

“Nós limpamos e recuperamos materiais como mesas e cadeiras para poder servir os almoços”, destaca o patrão da entidade, André Quinot. Com o auxílio de instituições e voluntários, também foi possível a aquisição de materiais de som e itens de cozinha. As águas ainda levaram vestimentas e uma biblioteca com grande acervo tradicionalista.

A defesa civil avaliou o local e permitiu a reconstrução. Conforme o patrão, a prefeitura vai abrir licitação para iniciar as obras no local. Sem verba para recuperar todos os materiais perdidos, a programação da semana farroupilha e o rodeio que a entidade vai promover em outubro são momentos de arrecadação. Nesta sexta-feira, 20, após o desfile pelas ruas da cidade, a programação volta ao CTG.

Movimento fortalecido

Vice-patroa do Querência do Arroio do Meio, Claudete Rempel destaca que as entidades tradicionalistas e o tradicionalismo no RS representaram, em 2023, R$ 4,5 bilhões para a economia do RS. Do total, segundo pesquisa feita pela Universidade Feevale, por meio da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac), R$ 2 bilhões foram de rodeios.

“O tradicionalismo é um importante elo da economia do RS, além das entidades serem espaços de cultivo às tradições, valores e costumes das famílias. É comum ver o pai e o filho laçando juntos, ou a criança dançando na mirim e os pais na veterana”. Claudete defende os CTGs como locais democráticos, com espaços para o desenvolvimento de atividades artísticas, culturais, campeiras e festivas para toda a família.

Força no trabalho

“Se não é pela paixão, pela vontade muito grande de estar no meio, há desistência”. A fala de Éder Clei da Costa Leite, proprietário da Cabanha Infinita Pasión, e vice-presidente do Núcleo de Criadores de Cavalos Crioulos do Vale do Taquari, descreve o sentimento de muitos criadores que perderam estruturas e animais durante as cheias.

Além da cabanha, que ficava em Vila Mariante, em Venâncio Aires, Leite ainda teve a casa atingida, em Estrela. As perdas foram muitas, incluindo todas as éguas reprodutoras e grande parte dos potros. Algumas das éguas também eram premiadas em competições como o Freio de Ouro, da Expointer. Restaram o garanhão e alguns potros.

“Nunca passamos por enchentes antes de novembro. Soltamos os animais no terreno mais alto da propriedade. Mas a cheia foi sem precedentes”, afirma. Reconstruir, para ele, está sendo um processo lento. Mas com a doação de algumas éguas que recebeu de amigos criadores de cavalos crioulo, ele continua criando os animais, em terras emprestadas de outro criador em Fazenda Vilanova.

A ideia dele e da família é comprar uma nova propriedade em local não alagável. Mas o alto custo das terras e a necessidade de recuperar a própria casa ainda não permitiram a aquisição. “O sonho permanece”, garante.

Leite diz que a criação de cavalos crioulos tem um custo elevado e a recuperação das cabanhas atingidas só é possível pelo amor dos proprietários pelo ramo e pelo tradicionalismo.

Entrevista
Luce Carmen da Rosa Mayer • Coordenadora da 24ª Região Tradicionalista (RT)

“Os espaços de cultura são o reflexo da solidariedade do povo gaúcho”

O que o 20 de setembro representa para o povo gaúcho na história, e o que representa hoje?

Luce Carmen – Na história, o 20 de setembro representa o início da Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha. Quando, nesta data, no ano de 1835, os farroupilhas foram vitoriosos na batalha da Ponte da Azenha e invadiram Porto Alegre, comandados pelo General Bento Gonçalves. Esta é considerada a mais longa guerra civil do país, perdurando por quase dez anos, e refletiu a diversidade das relações sociais e políticas, que abalaram o Império Brasileiro, na época. Hoje, o dia 20 de setembro representa as lutas e conquistas do povo gaúcho, que sempre foi ‘forte, aguerrido e bravo’, desde os primórdios da história.

Como foi a atuação dos espaços tradicionalistas durante as cheias?

Luce Carmen – Os espaços de cultura, principalmente as sedes dos CTGs, se tornaram grandes pontos de solidariedade após as cheias. Foram nos CTGs que recebemos inúmeras carretas vindas de outros estados do país, para fazer a destinação a quem realmente necessitasse. Neste momento de reconstrução, os espaços de cultura são o reflexo da solidariedade do povo gaúcho.

Quais características do gaúcho você percebe hoje naqueles que estão batalhando pela reconstrução?

Luce Carmen – Resiliência, por enfrentarem desafios com coragem e determinação, além da solidariedade e do espírito comunitário, com muitos se unindo para ajudar uns aos outros, uma herança da cultura de cooperação. Além disso, temos a valorização das raízes, com o respeito pela cultura, tradições e modos de vida, que ajudam a fortalecer a identidade cultural e dão motivação para o povo reconstruir. Por fim, a criatividade, porque, historicamente, o gaúcho consegue se adaptar perante a muitas adversidades.

Acompanhe
nossas
redes sociais