Moradores clamam por recuperação de rodovia para acessarem casas

quase 90 dias depois

Moradores clamam por recuperação de rodovia para acessarem casas

Desde a enchente de maio, dezenas de famílias de São Miguel e outras localidades não conseguem retornar para verificar o que sobrou das residências. Em péssimas condições, ERS-130 segue sem prazo para recuperação. Audiência hoje debate problemas da região

Moradores clamam por recuperação de rodovia para acessarem casas
Trecho severamente afetado pela cheia de maio permanece intransitável. (Foto: Felipe Neitzke)
Cruzeiro do Sul

Quase três meses se passaram da enchente histórica de maio, que deixou um rastro de destruição em Cruzeiro do Sul. E, desde então, muitas pessoas sequer conseguiram retornar para verificar o que sobrou de seus lares, sobretudo no interior. Localidades como São Miguel, Maravalha, Santarém e Desterro permanecem com acesso dificultado por conta das más condições da ERS-130.

Na enchente de setembro, a rodovia já havia sofrido danos severos. Desta vez, a estrada foi destruída em boa parte de sua extensão. Passar com veículos de passeio pequenos é uma missão praticamente impossível, segundo relatos moradores. Apenas carros 4×4, jipes ou tratores conseguem ingressar nos pontos mais afetados.

Dramas como a de Lurdes Salton Guerini, 74, se multiplicam pelo interior. A agricultora até conseguiu acessar seu imóvel. Na verdade, o que restou dele. “Não tinha como ficar muito tempo em hotel e nem na casa dos outros. A casa está toda arrebentada, não tem uma porta. Até conseguimos comprar as coisas, mas ainda não tem estrada para trazer”, comenta.

Conforme Lurdes, foram 74 dias para voltar o abastecimento de água e quase 90 para o restabelecimento da luz. Mesmo assim, acredita que o futuro da família – reside com o marido – é em outro local. “Residimos aqui há nove anos. Meu marido arrematou essa área em um leilão em 2002, por R$ 564 mil. Agora a terra não vale mais nada”.

Voluntários da Defesa Civil de Erechim se mobilizaram para auxiliar na limpeza em São Miguel. (Foto: Felipe Neitzke)

O casal produz grãos e, mesmo com todas as dificuldades pós-cheia, com direito a endividamento, pretende seguir na lida. “Achamos que o mundo precisa de grãos e de pessoas que investem nisso. Mas nem todos tem esse amor. Deus vai nos abençoar e vamos conseguir recuperar as terras e plantar”.

Sem rotas para escapar

Um dos motivos para, segundo Lurdes, muitas pessoas terem perdido a vida na enchente de maio é a falta de acesso para áreas mais seguras quando o nível do rio Taquari começa a subir. Além da cheia do rio, a elevação de uma lagoa também prejudica deslocamentos até outras regiões de Cruzeiro do Sul.

“As pessoas morreram porque não tinha acesso para escaparem. Para sair, tem que ser três dias antes do ápice da enchente. Meu marido perdeu várias pessoas conhecidas, aqui da nossa convivência. Não queremos mais perder gente. São pessoas, seres humanos”, lembra Lurdes, que ficou quase uma semana em um cima de um trator a espera de socorro, até ser resgatada.

Resistência

Árvore salvou pelo menos cinco pessoas, entre elas Sueli (e) e Pereira

O saldo da tragédia em Cruzeiro do Sul aponta para pelo menos 12 mortes – com vítimas identificadas. Há, ainda, cinco desaparecidos. E, entre as pessoas que conseguiram se salvar, muitas histórias dramáticas. A luta pela sobrevivência deixou traumas, mas também criou símbolos de resistência. Caso da nogueira, onde pelo menos cinco pessoas conseguiram se salvar.

“Foi um terror. O galpão começou a sacudir para cair e a minha esposa falou: só tem um recurso, que é nadar e ir até a nogueira. Era pau, caíco, iate e boi passando. E nós em cima da árvore”, relata o morador Pedro Pereira.

Foram duas noites em que ele e a mulher, Rosane, ficaram abraçados na árvore.

Já Sueli da Silva precisou superar um medo antigo: o de rio. “Tive que me jogar a uns três metros de profundidade. Ia para cima e me grudava na árvore e assim foi indo. O que eu tomei de água não tem explicação, uma sensação terrível. É um momento em que você está morrendo, mas não pensa na morte”, recorda.

A situação foi tão marcante que Sueli promete uma homenagem à árvore, que resistiu à cheia. “Em 3 de maio do ano que vem vamos fazer um churrasco aqui para marcar a data. Essa árvore foi a minha e a salvação de muitas pessoas”.

Plano

Também moradora da região, mas mais afastado da barranca do rio, Daniela Antunes Maciel não teve a estrutura da casa totalmente comprometida. Mas viveu dias de terror com a enchente de maio. A ponto de bolar um plano para que ela e a família não fossem levados pela correnteza, caso a residência não resistisse à força das águas.

“Quando o helicóptero chegou na quinta-feira (dia 2) para supostamente nos resgatar, mas sobrevoou e foi embora, me sentei e bolei um plano. Iríamos tirar as tábuas de cima, nos jogar na água se a casa fosse desmontada e tentar boiar”. Não foi necessário. O marido e a irmã foram resgatados de helicóptero. Ela e o filho, de jetski.

De terça-feira (dia 30) até a tarde de sexta-feira (dia 3) em cima de um telhado, Daniela lembra que mal conseguia se alimentar. “Levei uns cinco litros de água e forçava todo mundo a beber. Levei pão, salame, mas ninguém conseguia comer, ninguém tinha fome, acredito que pelo nervosismo”. Dormir também era uma tarefa difícil. “Os barulhos que você ouvia, de pessoas gritando, e os estrondos, não te deixavam descansar”.

Audiência e cobrança

Ocorre hoje, 22,b às 19h30min, uma audiência promovida de forma conjunta entre o município de Cruzeiro do Sul e o Ministério Público com moradores das localidades mais atingidas no interior. O encontro será no ginásio de Linha Sítio. Segundo a procuradora jurídica, Sabrina Schmitt, temas como a situação da ERS-130 devem estar em pauta.

Por se tratar de um trecho estadual, o município fica de mãos amarradas quanto às condições do trecho. “O município já cobrou do Daer melhorias no trecho, mas ainda sem sucesso”, pontua. Ela demonstra preocupação com a condição da rodovia, pois há pontos onde o talude desmoronou, o que exigiria um estudo técnico mais detalhado antes da execução de obras.

Procurado pela reportagem, o Daer ainda não havia se manifestado até o fechamento desta edição. A autarquia é responsável pela manutenção da ERS-130 desde o entroncamento com a RSC-453, em Lajeado, até General Câmara, passando por Cruzeiro do Sul, Venâncio Aires e Taquari.

Voluntários se mobilizam para limpar moradias

Voluntários de Erechim, no norte do RS, estiveram em Cruzeiro do Sul no sábado, 20, para auxiliar na limpeza de casas. Mais de 50 pessoas participam da mobilização. Conforme o coordenador da Defesa Civil de Erechim, Vagner Manica, o grupo saiu às 3h e chegou durante a manhã. O trabalho na região,
no entanto, não é novidade.

Manica lembra que, logo após as enchentes de maio, priorizou atendimento aos municípios da região do Alto Uruguai, também devastados. Depois, iniciaram uma campanha de arrecadação de donativos, que contemplou 28 municípios de diversas regiões do RS.

“Depois, tomamos a iniciativa de ir para Encantado e Muçum, onde conseguíamos contato com as pessoas. Auxiliamos no trabalho de limpeza das residências. E agora vamos fazer isso em Cruzeiro do Sul”, frisa. Pelo menos 16 casas foram atendidas neste sábado, 20.

Protestos

Não é de hoje que a situação da ERS-130 é alvo de críticas. No ano passado, após a cheia de setembro, moradores organizaram protestos pedindo atenção do governo do Estado à rodovia, sobretudo no trecho não asfaltado. A resposta do Daer na ocasião veio com promessa de recuperação imediata, mobilizando maquinário e contemplando reparação da ponte do Chafariz.

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