Na casa da família Campos, a tecnologia dá lugar aos jogos de tabuleiro e às leituras. O uso de celular e videogame entre as crianças até é permitido, mas sob a supervisão dos pais, com limites leves e conduzidos em consenso com os filhos. O mundo em frente às telas é apresentado aos pequenos com cautela. O maior objetivo é que eles tenham uma infância saudável e um futuro com boas decisões.
O filho mais velho do casal Felipe Lopes Campos, 44, e Valéria Cristina da Rocha Campos, 44, não teve acesso a um celular próprio até os 11 anos. Luiz Gustavo podia utilizar a internet nos aparelhos dos pais ou no computador para fazer alguma pesquisa ou trabalho da escola. Mas para o lazer, os pais ainda achavam cedo. O filho foi um dos últimos alunos da turma a receber o aparelho.
Mesmo com o celular em mãos, as redes sociais não são autorizadas. Felipe e Valéria acreditam que o filho ainda não tenha idade para administrar uma conta em seu nome. “Ele ainda está se adaptando a essa relação com a tecnologia. Possui Whatsapp para se comunicar conosco e com alguns grupos pequenos de amigos da escola”, conta Felipe.
Os pais destacam que antes de entregarem o celular ao filho, tiveram uma longa conversa em relação aos pontos positivos da internet, mas também sobre os alertas necessários. “Explicamos diversas situações. Desde a utilização de imagens, áudios, comentários e tudo o que podemos protagonizar utilizando a tecnologia”, diz Felipe. Além disso, também mostraram os caminhos que o filho poderia seguir e qual deles acreditavam ser o melhor para Luiz Gustavo.
Para uma rotina mais saudável
No dia a dia, é Valéria quem controla o acesso dos filhos às tecnologias. E, apesar de haver uma negociação para poder usar o celular ou videogame por mais tempo do que o combinado, Luiz Gustavo entende e aceita a imposição dos pais. Ele e o irmão mais novo, Paulo da Rocha Campos, 6, ainda ajudam em tarefas da casa e se dedicam à escola. O bom comportamento também serve de incentivo para que possam utilizar os aparelhos.
Com tudo bem estabelecido, a rotina é leve na casa da família Campos. Após a escola e o trabalho dos pais, os quatro se reúnem para fazer o dever de casa e, sempre que possível, incentivam os momentos de qualidade com jogos de tabuleiro ou leituras, que tanto Luiz Gustavo quanto Paulo gostam de fazer. A interação na cozinha e os passeios de bicicleta também são atividades que gostam de praticar juntos.
“Assistimos filmes também e sempre estabelecemos um momento para conversar sobre a semana, sobre o que cada um está sentindo. Educar é um desafio muito grande para qualquer família e a nossa ideia é fornecer a eles um ambiente tranquilo, seguro, para que eles desenvolvam ferramentas para o desenvolvimento”.
Comportamento
Graduado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda, mestre e doutor em Comunicação e Informação, Flávio Meurer fala sobre internet na infância. O professor da Univates compara a influência das redes sociais hoje, com a forma como a televisão e o cinema ditaram comportamentos em décadas passadas. Acredita que a onipresença dos meios digitais e o tempo que o público jovem passa acessando esses meios tenham um impacto ainda maior do que os meios analógicos tinham antes.
“A cultura atual explora como nunca a nossa necessidade de estímulos constantes, e nossa baixa tolerância ao tédio. É o que pesquisadores têm chamado de ‘cultura da dopamina’”. A comparação é feita já que dopamina é um hormônio que gera satisfação. Meurer também afirma existir nesse público, a sensação de que sempre há algo imperdível esperando no próximo vídeo nas redes sociais, que gera uma espécie de vício. “É um hábito em todas as idades, mas pessoas em formação podem ser ainda mais sensíveis a isso”, complementa.
Além disso, outra preocupação é com as informações compartilhadas na internet, que são importantes para quem ganha dinheiro com as redes, incluindo anunciantes, e que torna a comunicação direcionada, de maneira cada vez mais direta e específica. Isso é o que move as chamadas big techs – grandes empresas que exercem domínio no mercado de tecnologia e inovação, como a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.
Diálogo na família
Meurer diz que as pessoas em formação, como crianças e adolescentes, são mais suscetíveis a influências diversas, desde os grupos de amigos até os produtos de comunicação social. Segundo o professor, há estudos que identificam uma relação entre tempo de exposição às redes sociais e impacto negativo na autoimagem de adolescentes.
Ele ainda reforça a importância dos pais estarem atentos, em especial, a conteúdos relacionados a violência, pornografia ou qualquer outro que possa afetar integridade e desenvolvimento da criança ou adolescente.
O controle é possível, ainda que seja desafiador. “Existem meios tecnológicos de controle que permitem que os pais saibam quando, quanto e o que os filhos acessam na internet. Os pais precisam estar atentos e buscar diálogo com os filhos”.
Meurer reforça que os dados que os jovens fornecem sem se dar conta, seus “rastros digitais”, podem ser usados para golpes financeiros e até para crimes sexuais. O educador acredita que a melhor forma de evitar situações como essas é o diálogo.
Riscos
- Exposição de dados
- Pode influenciar na saúde mental
- Exposição a conteúdo impróprio ou enganoso
- Aumento da pressão social
Benefícios
- Desenvolver o pensamento analítico
- Democratizar as informações
- Possibilitar a exploração de novos conhecimentos
- Ampliar conexões
Entrevista
Ricardo Cappra • Pesquisador da cultura analítica e cientista de dados
“A chave está em promover uma cultura analítica”
Pesquisador da cultura analítica e cientista de dados, Ricardo Cappra afirma que é possível filtrar os dados e mitigar os riscos associados ao uso das redes sociais para os jovens. Neste processo, os pais e as escolas desempenham um papel crucial. Com auxílio da educação digital e de ferramentas de controle, é possível manter um diálogo aberto com os jovens e, principalmente, desenvolver o pensamento analítico.
O que são os “rastros digitais” e como eles podem interferir na vida das crianças e adolescentes?
Cappra – São as marcas deixadas pelas atividades online dos usuários, como histórico de navegação, postagens em redes sociais, compras online e interações em plataformas digitais. Para crianças e adolescentes, esses rastros podem ser usados para criar perfis detalhados que alimentam algoritmos de recomendação, moldando o conteúdo visto e influenciando seus interesses e comportamentos. Essas “bolhas” de conteúdo podem ser negativas se não houver conscientização adequada, pois representam apenas recortes da realidade. Além disso, a exposição a informações pessoais pode representar riscos de privacidade e segurança, tornando-os vulneráveis a cyberbullying, exploração e manipulação online. Contudo, é inevitável usar algoritmos em uma era de abundância da informação. O ideal é buscar equilíbrio e aprender a administrar essa tecnologia.
De que forma podemos educar os jovens para progredir nesta habilidade de lidar com os dados, sem que esse movimento interfira no seu desenvolvimento?
Cappra – Podemos incorporar a educação analítica na formação, usar abordagens práticas e promover a ética digital. Isso pode ser feito através da introdução de disciplinas que ensinem análise de dados, programação básica e pensamento crítico desde cedo. Além disso, é preciso utilizar projetos baseados em dados reais que são relevantes para os interesses dos jovens, tornando o aprendizado mais engajador e aplicável. Também promover o debate ético sobre uso dos dados, incluindo questões de privacidade, consentimento e o impacto social das tecnologias de informação.
O universo dos dados é um vilão ou um aliado da nossa rotina?
Cappra – Pode ser tanto um vilão quanto um aliado, dependendo de como é utilizado. Como aliado, os dados podem oferecer insights valiosos, melhorar a tomada de decisão, personalizar experiências e impulsionar inovações em diversas áreas, desde a saúde até a educação e os negócios. No entanto, quando mal utilizados, os dados podem invadir a privacidade, manipular comportamentos, perpetuar desigualdades e gerar dependência tecnológica. A chave está em promover uma cultura analítica, enfatizando o uso ético e consciente dos dados, educando todos, para compreenderem e navegarem esse universo de forma responsável e crítica.
Ricardo Cappra é um entusiasta do universo analítico e da tecnologia da informação. Ele acredita que ambos têm potencial para transformar positivamente a sociedade. Para ele, aprender, explorar, analisar e automatizar tornaram-se atividades exponenciais em razão da aceleração tecnológica e a democratização da informação. “Obviamente, é preciso um debate e manter um movimento contínuo com relação aos riscos e equidade desses avanços, mas isso também faz parte de uma evolução da sociedade”.