Cheias revelam vestígios de antigas civilizações

PESQUISA E CONSERVAÇÃO DA HISTÓRIA

Cheias revelam vestígios de antigas civilizações

Após ação das águas nos solos da região, materiais como cerâmicas e ferramentas em pedras ficaram descobertos. Pesquisadores acreditam ser de povos indígenas que habitaram o Vale há mais de 3 mil anos, ou de colonizadores europeus

Cheias revelam vestígios de antigas civilizações
Pesquisadores iniciaram o trabalho de análises em propriedade de Roca Sales, com estudos de campo e recolhimento de materiais. (FOTOS: Divulgação)
Vale do Taquari

Embaixo das terras, das casas ou às margens dos rios, a história de antigas civilizações é mantida, mesmo 3 mil anos depois. Com as cheias históricas, tanto em setembro de 2023, quanto maio de 2024, a força das águas destruiu vegetação, edificações e fez surgir materiais em contextos que indicam costumes de outros povos na região.

Os vestígios do passado são analisados e preservados pelos arqueólogos e, com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), encaminhados para estudos na Univates. Materiais já foram encontrados em Roca Sales, além de outras cidades do Vale do Taquari.

Já na cheia de setembro de 2023, foram encontradas vasilhas de cerâmicas indígenas, identificadas como pertencentes dos povos indígenas Guarani, que viviam na região há mais de 3 mil anos, até a chegada dos primeiros bandeirantes e dos jesuítas espanhóis. Os Guaranis tinham grande ocupação, principalmente na região do Vale.

Em Roca Sales, ainda foram encontrados vestígios de pedra lascada, plantas domésticas e outros materiais que remetem ao cotidiano dessas populações.

História nos detalhes

Arqueóloga e professora da Univates, Neli Teresinha Machado faz parte do grupo que pesquisa os materiais. Ela conta que a equipe estava em processo de elaboração de um projeto para conseguir recursos e continuar o trabalho iniciado em 2023, quando a enchente de maio atingiu as propriedades e deixou ainda mais vestígios à mostra.

Neli afirma existir uma lenda antiga de que os indígenas, assim como os jesuítas na região, tinham ouro nas propriedades. Segundo a professora, essa é uma história comum entre os agricultores, e gera curiosidade sobre os materiais encontrados.

A arqueóloga destaca a importância de manter os materiais intactos, nos locais onde foram encontrados, e sem a interferência da comunidade. “As pessoas começam a quebrar as urnas e recolher o material. Isso é errado. Existe uma lei de proteção ao material arqueológico”, reforça.

Para os novos objetos encontrados após as cheias de maio, as equipes estão aguardando uma portaria do Iphan, além de recursos para ir à campo. De acordo com Neli, a equipe vai envolver vários arqueólogos, de diferentes universidades. Para os pesquisadores, é importante que o material esteja no contexto em que foi encontrado.

“Quando uma pessoa sem conhecimento recolhe esse material, ela acaba recolhendo também muitas informações como sedimentos, pólen, fitólitos, temos vários materiais que não estão à olho nu”.

Caso a comunidade encontre algum material que acredite ter relação com a história de civilizações antigas, deve entrar em contato com a Univates para que seja feita a análise, pelo número (51) 3714-7000, ramal 5563 e 5504. As pesquisas ocorrem no Laboratório de Arqueologia do Museu de Ciências da Univates, instituição cadastrada no Iphan.

A pesquisa

Pesquisas de campo só podem ser feitas com autorização do Iphan

Os bens arqueológicos são patrimônios da União e, por isso, toda pesquisa arqueológica que possa vir a intervir em sítios arqueológicos deve ser autorizada pelo Iphan, que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura.

O tipo de vestígio material que é encontrado depende do tipo de sítio e das populações que viviam no local. Para populações mais antigas e sítios relacionados aos povos originários, os vestígios podem ser desde instrumentos de pedra, cerâmica, vestígios orgânicos como restos de carvão e de animais e até mesmo remanescentes humanos. Já em contextos mais recentes, após contato com europeus, os vestígios localizados são louças, metais, vidros, material construtivo, restos de alimentação, entre outros.

Para que uma pesquisa desse tipo seja feita, os profissionais precisam apresentar um projeto, indicando a equipe, os locais que serão pesquisados, metodologias, garantia financeira e indicando para onde irão os objetos coletados durante a pesquisa.

Anos de estudos

Já na década de 70, alguns pesquisadores percorreram o Vale, com o intuito de registrar e coletar material arqueológico comprovando a ocupação de povos pretéritos na região. A técnica utilizada foi a coleta superficial e o registro sistemático desses sítios para fins de catalogação.

Parte desse trabalho está registrado no documento “Pesquisas arqueológicas do Vale do Taquari – RS/Brasil, escrito pelos pesquisadores Jones Fiegenbaum, Marlon Welp, Patrícia Schneider e Neli Teresinha Machado.
De acordo com Neli, ao todo, já foram localizados mais de 100 pontos com vestígios na região e mais de 80 sítios arqueológicos foram cadastrados junto ao Iphan.

Entre os registros, estão sítios arqueológicos encontrados em Arroio do Meio, Estrela, Muçum, Paverama, Relvado, Encantado, Ilópolis, Marques de Souza, Lajeado, Cruzeiro do Sul, Colinas, Santa Clara do Sul, entre outros municípios. Nestes locais, foram encontrados materiais cerâmicos, pedra lascada e polida, material ósseo, além de mapeadas possíveis áreas de convivência de antigas civilizações.

Em pontos mais específicos, ainda foram coletadas peças como moedores, mãos de pilão, lascas de calcedônia (um mineral), bifaces (ferramentas de pedras), entre outras.

Também há estudos sobre as primeiras ocupações alemãs na região, com identificação de louças, entre outros materiais que retratam o cotidiano dos imigrantes. Todo o material recolhido é analisado, para identificação das características e procedência, e contam com relatos de descendentes de colonizadores da região.

Entrevista
Rafael Passos • Superintendente do Iphan-RS

“Preservar esses objetos permite que se conheça a história de um território”

O que está sendo pesquisado no Vale do Taquari?

Existe um pedido de autorização de pesquisa arqueológica na região, encaminhado por pesquisadores da Univates, que está em processo de análise para publicação da portaria autorizativa de pesquisa. Em decorrência da situação de calamidade pública do estado, pesquisadoras da Univates entraram em contato com Iphan, em maio de 2024, indicando que pelo menos um sítio arqueológico havia sido impactado pela enchente e estava em risco. Diante deste cenário, foi emitida uma autorização emergencial para coleta dos materiais arqueológicos em superfície pelas arqueólogas da Univates, e que agora, formalizaram o pedido de autorização de pesquisa arqueológica, segundo as normativas vigentes. Os primeiros humanos que circularam nesse espaço foram grupos caçadores-coletores. A partir do século XV, inicia a ocupação Guarani, que se assenta em torno dos principais rios e arroios da região. Mais tarde, a região começa a receber imigrantes europeus e seus descendentes, além de africanos que foram escravizados. Então, é possível encontrar vestígios de todas essas populações.

Qual a importância de preservar esses objetos encontrados?

Os objetos arqueológicos, muitas vezes, são os únicos vestígios de populações que habitaram uma região em um passado mais distante. A pesquisa arqueológica também permite perceber outras nuances e perspectivas da vida das pessoas, trazendo à tona seu cotidiano e aspectos da vida material. Assim, preservar e estudar esses objetos permite que se conheça a história de longa duração de um território. É possível que as pesquisas arqueológicas atuais tragam elementos para se entender melhor aspectos ambientais relacionados com as alterações climáticas contemporâneas.

Como se dá esse processo de pesquisa?

A pesquisa arqueológica possui diversas perspectivas teóricas, metodologias de campo, de análise de materiais e interpretações. Geralmente inicia com uma revisão bibliográfica, para compreensão do contexto em que será realizada a intervenção e busca por vestígios. Depois, podem ser feitas prospecções, escavações e diferentes ações em campo para compreensão do sítio arqueológico e coleta dos materiais. Em laboratório, os materiais são higienizados, catalogados, analisados, interpretados, gerando conhecimento acerca dos artefatos e dos grupos humanos que os produziram. Há uma combinação de informações para entender os processos de sobreposição das camadas de formação dos sítios. Existem diferentes procedimentos e técnicas que auxiliam a localizar e a datar os vestígios no tempo. Eles podem ser através de processos físico-químicos, mas também por meio de inferências relativas, por comparação, entendendo o que é mais antigo, mais recente, ou do mesmo período. A interlocução com os moradores das proximidades dos sítios, entrevistas e outras estratégias que envolvam as comunidades interessadas ou diretamente relacionadas a esses bens são fundamentais para que a pesquisa ocorra de forma qualificada e condizente com os desafios contemporâneos de preservação do patrimônio arqueológico.

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