As memórias da antiga Picada Scherer

BAIRROS DE LAJEADO

As memórias da antiga Picada Scherer

Há mais de 100 anos, as primeiras famílias se estabeleceram nos territórios que hoje são os bairros Imigrante, Igrejinha e Planalto. De lá para cá, muitas das características rurais se mantiveram e, nas famílias centenárias, as velhas histórias ainda são passadas de geração em geração

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Atualizado segunda-feira,
01 de Junho de 2024 às 08:59

As memórias da antiga Picada Scherer
A primeira turma a ter aulas na Emef Capitão Felipe Dieter, em 1961. Ao fundo está o antigo prédio de madeira

Quase 150 anos depois dos primeiros colonos chegarem a essas terras, os bairros Imigrante, Igrejinha e Planalto ainda conservam traços daquela época. Seja pelo chão batido da maioria das estradas ou pelo território que ainda é majoritariamente rural.

Flávia Scherer

Há pouco mais de três décadas, essas localidades eram conhecidas por um único nome: Picada Scherer. Isso porque ainda no século XIX, o imigrante Johann Jacob Scherer comprou uma grande parcela dessas terras.

Com ele, veio a esposa e os filhos, entre eles, o avô de Flávia Scherer Gutjahr, mais conhecida como Lisa. Aos 70 anos, ela ainda mora na casa onde cresceu, no bairro Imigrante, próxima à Escola Municipal Capitão Felipe Dieter.

“Todo mundo sempre foi agricultor por aqui. Conforme cresceram as novas gerações, os antigos lotes do bisavô foram sendo vendidos e o bairro foi crescendo”, explica.

Shirlei Dieter

Casa centenária

Um pouco mais adiante, outra família antiga do Imigrante conserva uma casa histórica. Shirlei Dieter, 58, conta com orgulho a história da família na localidade. O bisavô dela é quem dá nome a única escola do bairro: Felipe Dieter.

Dieter era filho de um imigrante alemão e foi voluntário na Guerra do Paraguai, onde conquistou a patente de Capitão. Depois do conflito, nos anos 1870, aposentado, comprou três colônias na Picada Scherer, para onde se mudou com a família. No bairro, ergueu uma das mais antigas casas de Lajeado, em estilo enxaimel.

Bisneta do capitão, Shirlei conta que a casa da família servia como um pequeno cartório na época. “Ele, e depois meu avô, fazia registros para as pessoas aqui da comunidade, já que falava português e alemão”, cita. Shirlei é a mais nova de oito irmãos e, hoje, é ela quem preserva o legado da família.

Luta pela educação

Até a Emef Capitão Felipe Dieter ser inaugurada, há mais de 60 anos, as crianças do bairro tinham que caminhar quilômetros até o bairro Olarias, próximo ao Cemitério Evangélico, ou até Conventos, no atual Colégio Sinodal.

A situação mudou em 1961, quando o avô de Shirlei, Pedro Júlio Dieter, doou terras para a escola, ao lado da casa da família. “Eu ficava na cama até escutar a sineta, daí eu levantava correndo e ia para aula”, lembra Shirlei.

Toda a comunidade se envolveu na construção do educandário, erguido em um mês e inaugurado em março de 1961, com uma grande festa. Na ocasião, o pai de Shirlei, Walter Dieter, pediu ao prefeito da época, Bruno Born, que a nova escola recebesse o nome de Capitão Felipe Dieter, uma homenagem à família que cedeu o terreno.

As aulas iniciaram no dia seguinte para mais de 40 alunos, da 1ª a 5ª série. A pequena escola, feita em madeira, tinha somente uma sala de aula na época e ficava no terreno onde hoje está a quadra esportiva da Emef.

Quem conhece bem a história da escola é a atual diretora do educandário, Jeanine Auler. O pai cresceu no bairro Imigrante, numa família de agricultores, e a mãe, Nadir Kaufmann, foi a primeira professora da Emef.

“Meus pais se conheceram quando minha mãe veio dar aulas aqui. Depois de casados, a casa da nossa família ficava ao lado da escola”, conta Jeanine. Ela e os seis irmãos estudaram na Capitão Felipe Dieter e, desde 2000, ela trabalha no educandário.

Romeu Ammes

50 anos no bairro

Quando Romeu Ammes, 75, se mudou com a esposa e os dois filhos para o Igrejinha, a localidade fazia parte da antiga Picada Scherer. Sem asfalto, sem água encanada e sem energia elétrica. Nessas condições a história dos Ammes começou no bairro. Essa era a realidade da maioria das famílias. “Aqui era tudo colônia ainda, com roça e mato. Tive que puxar os fios de luz lá em casa”, lembra.

As terras pertenciam à família Etgeton e, Ammes, natural de Arroio do Meio, comprou nove hectares da propriedade. “Eu tinha terrenos até o Forqueta, plantava soja no Planalto. Isso aqui era interior, então foi difícil trazer uma estrutura mínima para cá”, recorda. A água foi uma luta. Por muitos anos, Romeu teve de ir buscar baldes de água nos vizinhos, de carroça. O encanamento só chegou nos anos 1980.

O salão da comunidade foi outra luta. “Esse é o meu maior orgulho. Esperamos por anos a prefeitura erguer, mas foi a comunidade quem construiu. Eu passei de casa em casa, fiquei oito dias andando pelo bairro e perguntando quem queria ajudar a pagar, quem gostaria de ser sócio honorário”, recorda. As janelas ainda hoje carregam os nomes de quem ajudou com doações.

Ammes ainda lembra que, quando se mudou para o Igrejinha, nos anos 1970, a velha igreja adventista estava abandonada. “Ela foi reformada depois e, na década de 1990, lembro que fui um dos que ajudou a nomear o bairro. Sempre achei que a comunidade devia honrar o seu passado, e a gente sempre usou a igrejinha como referência de localização, por isso ficou o nome”, explica.

Foi nos anos 1980 que iniciaram a construção de uma igreja para a comunidade católica de Picada Scherer

A igreja histórica

A maioria das terras que hoje formam o bairro Igrejinha eram da família Etgeton. “Meu avô veio da Alemanha e meu pai foi comprando esses terrenos, ele era um bom negociante”, lembra Renato Etgeton, 74. O pai dele, Willibaldo Etgeton, tinha em torno de 100 hectares que mais tarde dividiu entre os seis filhos.

“Meu irmão pegou a parte dele e dividiu em terrenos menores, dando origem ao Loteamento Etgeton”, conta. Por volta dos anos 1990, a prefeitura vendeu esses lotes a preços mais acessíveis.

A velha igreja adventista, que dá nome ao bairro, foi erguida em 1939. “Foram meu pai e meu avô que construíram ela. O pai ia até Forquetinha buscar tijolos, de carroça, passava pela antiga ponte de ferro”, lembra Renato.

Renato Etgeton

Etgeton cresceu no bairro e depois criou os quatro filhos na localidade. Da infância, lembra de assistir os tropeiros vindo com o gado de Soledade, pela estrada velha, que passava pelo bairro Olarias, antes da BR-386. “Minha família costumava ir para o Centro de Lajeado vender produtos coloniais. Nunca esqueço que minha mãe vendia 150kg de moranguinho para o velho sorvete Urso Branco”, lembra.

Além das atividades rurais, o pai de Renato administrava também uma olaria de tijolos, perto do Rio Forqueta, no que é hoje o bairro Planalto. “Peguei muita terra ali na várzea para a olaria. Trabalhei com meu pai até os 23 anos, fazíamos uns 300 mil tijolos por mês”, conta Renato. Ele abriu o negócio próprio mais tarde, também uma olaria, que administrou por quase 40 anos. Hoje, o filho Emerson empreende no bairro, com uma cascalheira.

História de gerações

Quem também cresceu por entre esses três bairros foi Silvio Black, 75. Morador da Picada Scherer desde 1957, teve a casa invadida pela água na enchente de maio. “Uma pena, perdemos muitas fotos e documentos”, recorda. Black não foi o único. Registros antigos da comunidade ficaram ainda mais raros depois das recentes cheias.

Mas a memória de Silvio ainda lembra bem do ano de 1964, quando tinha 15 anos, e foi fundado o Esporte Clube Amador de Picada Scherer. “Eu fui um dos 24 sócios fundadores, nem sabia jogar bola direito quando começamos”, brinca. Na época, os Dieter cederam um terreno para o campo. Em 1975, iniciaram a construção de uma sede para o clube.

Black jogou bola até os 25 anos, mas continuou o trabalho no amador nas décadas seguintes. “Sempre participei, fui presidente, tesoureiro. Fazíamos festas para angariar recursos, minha esposa até ganhou o apelido de ‘mãe dos pastéis’ porque estava sempre envolvida na cozinha”, recorda.

A estrutura do antigo clube ainda está de pé, na rua Wilibaldo Eckardt, mas está desativada há anos. Nas seis décadas de funcionamento do clube de futebol, muitas gerações passaram pelo gramado. “Desfiz a sociedade no ano passado. As amizades que construí nesses anos todos valem ouro, foram bons tempos”, lembra. Hoje, Black vê o neto calçar a chuteira e levar um pouco da história da família no futebol.

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