Entre o recomeço e o luto, o equilíbrio das emoções

saúde mental no pós-cheia

Entre o recomeço e o luto, o equilíbrio das emoções

Profissionais alertam para os cuidados à saúde mental após as catástrofes e destacam a importância de respeitar processos e estar atento quando os sinais passam dos esperados para o alerta à uma patologia

Entre o recomeço e o luto, o equilíbrio das emoções
Quando os sintomas persistem ou se intensificam, a ajuda profissional é essencial. (FOTOS: DIVULGAÇÃO)
Vale do Taquari

Passados 50 dias da cheia histórica que destruiu mais de 5,5 mil residências no Vale do Taquari, deixou 43 pessoas mortas e outras 23 desaparecidas, famílias ainda vivem o luto da tragédia. Além da necessidade de reconstrução das moradias e reorganização de rotinas, as mudanças de vida e as perdas, humanas ou materiais, exigem que a atenção se volte, também, à saúde mental.

Desde as cheias de setembro do ano passado, a comunidade também vive com a incerteza de familiares desaparecidos, o que se repete na tragédia de maio deste ano e, por vezes, torna o processo ainda mais doloroso.

Para auxiliar nessa demanda por saúde mental que cresce no Vale do Taquari, profissionais voluntários da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), vinculados ao governo federal, atuam na região, estabelecendo junto aos municípios, estratégias na área.

Entre os voluntários, estão a psicóloga Beatriz Schmidt e o enfermeiro Cléber Verona, que vieram de Porto Alegre para integrar a equipe de trabalho. Com experiências em outros desastres, como o terremoto do Haiti, em 2010, e o incêndio da Boate Kiss, Verona diz que a tragédia no Vale do Taquari está entre as situações mais intensas em que atuou.

Profissionais da Força Nacional do SUS vieram à região para auxiliar os sistemas de saúde dos municípios

“Minha função aqui é tentar localizar os municípios que precisam de ajuda. Os próprios profissionais também são afetados, perderam suas casas, mudaram a rotina, e isso também interfere no trabalho. Nossa função é tentar mapear isso e oferecer ajuda”, reforça. Na tragédia de setembro do ano passado, o enfermeiro também veio ao Vale, para atuar em Roca Sales, onde montou com a equipe um hospital de campanha.

Lidar com a dor

A psicóloga Beatriz destaca que os processos de luto são esperados frente a perdas importantes. “Vai provocar reações que envolvem a transição da pessoa lidar com a vida como ela era antes da perda, e como se torna depois. O processo do luto é esperado, mas é doloroso”.

De acordo com a profissional, o luto pode ser por um bem material, como casas, fotos perdidas que traziam histórias da família ou eventos extremamente dolorosos, como perdas humanas ou a espera da confirmação de óbitos.

Ansiedade, angústia, tristeza, choro, alterações gastrointestinais, alterações no sono, com muitos despertares noturnos, insônia e alterações no apetite, são reações normais ou esperadas no processo de luto. Todas as fases devem ser reconhecidas.

Pessoas enlutadas precisam do restabelecimento de vínculos

“Às vezes, as pessoas têm uma boa intenção de ajudar e acabam falando: olha, você não deve ficar triste porque perdeu um objeto ou porque sua casa foi atingida, porque você está vivo. Mas todas as perdas são importantes e a gente não consegue imaginar qual é a dor de uma perda específica para a outra pessoa”, ressalta a psicóloga.

Beatriz compara o processo de luto com um pêndulo. De um lado, quem está de luto volta para as lembranças, para uma necessidade de ficar em silêncio, de entender uma nova realidade. Do outro, a pessoa pensa no futuro.

“Esse vai e vem é natural e esperado. Então o alerta deve ser a essas pessoas que têm dificuldade de seguir a vida, que desistem dos sonhos, de projetos de vida, uma dificuldade de se vincular em novos relacionamentos”.

Aumento na demanda

Psicóloga e coordenadora da clínica-escola da Univates, Mariana Brandão percebe um aumento na demanda da saúde mental após os desastres climáticos. De acordo com a profissional, pessoas que já estavam em atendimento intensificaram seus medos, com reações de insegurança e ansiedade frente ao inesperado e desconhecido. Outras procuram atendimento a partir desses eventos, que desencadearam diversas limitações emocionais.

Entre as consequências de passar por um trauma, são esperados grandes impactos. Choro frequente, medo, angústia e preocupações, tanto com o bem-estar, quanto com questões financeiras e garantias de acesso ao trabalho, escola ou espaços de lazer.

Segundo Mariana, essas reações devem diminuir à medida em que essas questões vão sendo respondidas. O que permanece dos sintomas, no entanto, deve ser investigado de forma mais específica.

“As cheias intensificaram os sentimentos das pessoas. Quem se sentia ansioso anteriormente, tem isso reforçado pelo contexto externo. Quem estava deprimido, pode ter isso agravado também”.

A psicóloga afirma ser preciso buscar ajuda quando o sujeito se paralisa diante das condições que se apresentam e não consegue pensar nas alternativas oferecidas para seguir adiante. Ela ainda ressalta o atendimento feito na universidade, de pacientes encaminhados para a clínica-escola pelos postos de saúde e destaca a importância do cuidado à saúde mental.

Prevenção

Médicos do Caps Adulto – Conviver em Liberdade, de Lajeado, Lincon Matheus Moncon Severo e Debora Fischer Pettenon acreditam que a demanda no sistema de saúde deve aumentar com o passar dos meses, por conta dos traumas deixados pelas cheias. O perfil dos pacientes é variado, mas grande parte são chefes de família, em especial, as mulheres.

“A atenção psicossocial na situação de desastre precisa ir além, deve estar mais atuante na prevenção, durante e no pós-desastre, garantindo o cuidado integral a todas as pessoas envolvidas”, afirma o coordenador do Caps, Sérgio Luiz Demarchi.

O profissional destaca que o acolhimento em situações de traumas consiste na escuta qualificada, que reafirma a legitimidade da pessoa ou familiares que buscam o serviço e visa reinterpretar as demandas, construir o vínculo terapêutico inicial e garantir acesso a outros serviços, caso necessário.

“A psicoterapia é um passo importante para conseguir superar o luto, o estresse pós-traumático e outros aspectos após tragédias”, garante. O serviço é a porta de entrada para o atendimento em saúde, que busca amenizar a dor e auxiliar na construção de novas possibilidades para o futuro.

Quando ficar atento

Exacerbação de reações psicológicas em pessoas com demandas de saúde mental preexistentes e aumento no uso de substâncias também são reações esperadas, assim como ocorrência de diferentes formas de violência.

Aos trabalhadores

  • Propor ações abrangentes, que integrem os níveis organizacional, interpessoal e individual, na oferta de cuidados a trabalhadores;
  • Garantir a participação das equipes de saúde no planejamento das ações em curto, médio e longo prazo;
  • Adotar comunicação institucional cuidadosa, direta, consistente e atualizada, contribuindo para a saúde dos trabalhadores e a efetividade da resposta ao desastre;
  • Promover ambientes de trabalho que possibilitem a escuta, o apoio e o reconhecimento das contribuições dos trabalhadores;
  • Cuidar de si enquanto cuida de outras pessoas.

No processo de luto

  • Garantir segurança e integridade físicas, alimentação, água, acesso a banheiro, roupas, local para dormir, medicação de uso contínuo, reunificar famílias e pessoas de referência;
  • Auxiliar no processo de identificação de corpos e nas cerimônias de despedida. Favorecer apoio espiritual, de acordo com as culturas e considerando as diversidades;
  • Psicoeducar em relação às manifestações esperadas do processo de luto. Favorecer mecanismos de enfrentamento;
  • Encaminhamento para profissionais de saúde mental das pessoas com transtornos mentais mais incapacitantes.

Resiliência individual e coletiva

Experiências de perdas no contexto de desastres também pode promover a ressignificação de diferentes âmbitos da vida. Muitas pessoas conseguem assimilar as transformações decorrentes de situações críticas, honrando memórias e se desenvolvendo de forma saudável a partir delas. Estratégias:

  • Estabelecer uma relação segura e próxima entre as pessoas afetadas e a rede de apoio;
  • Incentivar o compartilhamento de emoções, como tristeza e raiva;
  • Estimular a busca por apoio espiritual, conforme crenças da pessoa enlutada, com respeito às diversidades;
  • Fortalecer solidariedade e ajuda mútua entre membros da comunidade atingida;
  • Facilitar a resolução de problemas práticos;
  • Fortalecer os laços sociais;
  • Promover senso de propósito compartilhado frente às adversidades.

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