Sou daqueles felizardos cuja residência e sede da empresa não foram atingidos pela enchente, em Arroio do Meio, evento este com repercussões por décadas. Por sermos do ramo de materiais de construção, ladeados pela equipe laboriosa e briosa de funcionários, mesmo sem água, luz e internet começamos a atender os que nos demandavam, entorpecidos pela dura realidade, à procura de materiais para esboçar uma reação o que, em paralelo, nos deu a exata noção das repercussões da catástrofe.
Há dois domingos reuni coragem e transitei pelos bairros Aimoré e Navegantes, amostragem real da dureza da enchente. Este último, devastado, um verdadeiro cenário de guerra. Residências, empresas, igreja, tudo aos pedaços. De repente, lá no meio, uma pessoa sentada nos escombros, limpando os parcos tijolos que sobraram, empilhando-os um a um. Aproximei-me e vi que era um conhecido. Com lágrimas a escorrer pelo rosto, esboçou um largo sorriso o que parece paradoxal. Mas chorou pela perda da moradia e seu conteúdo – fruto do trabalho laborioso de uma vida toda -, e pela perda da vizinhança, mas riu pela gratidão de estar vivo, com seus familiares, permitindo-lhes partir, com fé, para o refazimento de tudo. Passados os rápidos momentos de emoção, me encarou e disse uma frase inesquecível: “sei que neste bairro onde cresci e criei meus filhos, não voltaremos. Por isto, apenas gostaria de voltar a ter um lugar prá chamar de meu”.
Linha comum observada em todos os atingidos pela cheia: garra e força interior incríveis para se reerguerem. Reabrem seus negócios e residem onde dá, voltando a sorrir e sufocando a dor das perdas.
Nas indispensáveis e urgentes iniciativas de apoio ao refazimento de tudo, me fixo aqui na questão fundiária, nos que perderam suas moradias.
Enganosa a idéia de fazer blocões com centenas de casas ou apartamentos com metragem quadrada ínfima, embriões de núcleos reféns fáceis das facções criminosas. Deve-se aprofundar a análise e para tal deixo uma sugestão: criar política pública habitacional que permita às pessoas reconstruirem seus lares com a mesma individualidade com que construíram os que perderam, sem massificação, viabilizando-lhes um lugar que possam chamar de seu. Deem-lhes um terreno, a troco do que deixarão para trás, tornando este um bem público, e implantem linha de financiamento habitacional de longuíssimo prazo, operada por todos os bancos, com valores compatíveis, juros subsidiados, fundo garantidor, sem descartar a compra de imóvel usado. Não será prestar um favor, mas fazer justiça social. De rebarba, impulsionará a economia, recolocando sorrisos sem fim, em centenas de milhares de rostos pelo Estado afora.