Memórias de uma enchente quase esquecida

CHEIA DE 1919

Memórias de uma enchente quase esquecida

Diante do cenário que o Vale do Taquari Vive hoje, depois de passar por quatro enchentes em menos de um ano, moradores de Forquetinha, Marques de Souza, Arroio do Meio, Travesseiro e Canudos do Vale recordam outra cheia histórica que vitimou 17 pessoas e destruiu dezenas de casas nos municípios

Memórias de uma enchente quase esquecida
Enchente de 1919 e outras que se seguiram são marcadas nas paredes da casa da Família Essig. (FOTOS: Bibiana Faleiro)
Vale do Taquari

O dia amanheceu abafado em 22 de novembro de 1919. Moradores de Forquetinha, que pertencia a Lajeado na época, contam que, pela manhã, uma vizinha atravessou o Arroio Forquetinha para entregar um pão feito por ela a uma família na margem oposta e voltou com águas ainda tranquilas.

Pouco tempo depois, as águas surpreenderam os moradores da localidade, a correnteza desceu com velocidade de Boqueirão do Leão e dos morros. O arroio subiu muito rápido e inundou comunidades inteiras. Dezenas de casas, galpões e pequenos estabelecimentos ficaram destruídos. Pelo menos 17 pessoas perderam a vida.

As lembranças da enchente de 1919 são guardadas por poucos, tanto que a cheia não consta nos principais registros históricos de inundações na região. As cidades mais atingidas no episódio foram Forquetinha, Marques de Souza, Canudos do Vale, Travesseiro e Arroio do Meio, localidades circundadas pelo Rio Forqueta, onde também deságua o Arroio Forquetinha e o Arroio Alegre. Sem medições ou sequer comunicação naquela época, não se sabe a altura que as águas atingiram.

Moradores da época marcaram a enchente em pedras ou pedaços de madeira que, com o tempo, foram perdidos. Em histórias, porém, permanece a memória dos locais atingidos e da força das águas, que indicam que aquela cheia teria sido semelhante, podendo ter sido até maior do que a de maio de 2024 em determinados pontos.

Waldemar Richter é morador de Forquetinha e conta como foi a enchente em diferentes pontos da localidade, de acordo com histórias contadas pelo avô

Morador de Forquetinha e historiador, Waldemar Richter lembra do avô conversar sobre essa tragédia com os vizinhos. “A enchente de 1919 foi muito comentada. Eles sentavam para jogar cartas ou tomar chimarrão no fim do dia e contavam aquela história. Eu era criança e fui guardando isso”, recorda.

Dos relatos que ouviu, conta que, pela força e rapidez com que as águas desceram dos morros e chegaram ao Forquetinha, ninguém estava preparado para a cheia. Essas localidades recém tinham sido povoadas, com a maioria das lavouras próximas das barrancas. Alguns desses primeiros imigrantes alemães tentaram salvar animais ou pertences, mas grande parte das estruturas por onde a correnteza passou foi destruída.

Entre as histórias, a do patriarca da família Prass, que foi buscar os animais que estavam próximos do arroio e a água o circundou. Ele encontrou refúgio no alto de uma laranjeira, onde ficou um dia e uma noite, e se salvou. Mais tarde, Richter inclusive sugeriu construir uma praça e um monumento de uma laranjeira para marcar o fato.

Nos jornais

A notícia sobre a enchente foi divulgada pelo jornal A Federação, de Porto Alegre, no dia 11 de dezembro, relatando as perdas dos moradores

A tragédia foi noticiada pelo Jornal A Federação, de Porto Alegre, no dia 11 de dezembro daquele ano. Nas páginas do periódico, ficaram registrados os principais prejuízos da enchente de 1919, desde residências, a moinhos, pequenas indústrias, animais e lavouras. Naquele tempo, todo esse território pertencia a Lajeado. Apesar dos registros apontarem para as maiores perdas ao longo do Rio Forqueta e do Arroio Forquetinha, casas também foram destruídas nas margens do Rio Taquari, nos atuais bairros Carneiros e Conservas.

Em Canudos do Vale, a escola construída em 1917 foi ao chão apenas dois anos depois, arrastada pela correnteza. Nos morros, surgiram fendas na terra. Por muitos anos, uma fissura profunda na divisa entre Marques de Souza e Forquetinha amedrontou os moradores. Junto à enchente de 1919, com o alto volume de água que desceu dos morros, um desmoronamento soterrou uma família inteira em Linha Orlando, Marques de Souza. Oito pessoas morreram.

Diante das perdas, materiais e humanas, a reconstrução dependia dos próprios moradores, que tiveram que recomeçar as lavouras e a criação de animais, sem nenhum suporte do governo. “A característica comunitária salvou aquela comunidade”, conta Richter. Por outro lado, alguns moradores não aguentaram a tristeza e as perdas e se mudaram, como é o caso do médico Johann Harzheim, que teve a casa e os equipamentos destruídos e voltou a Porto Alegre, onde morava um irmão.

Entre as famílias atingidas na época, estavam as de sobrenome Wolfart, Winter, Doebber, Ströher, Haas, Feil, Lamb, Wüst, Schumacher, Musskopf, Gallas, Georg, König, Grün, Schwingel, entre outras. Algumas pessoas foram arrastadas pela correnteza e mortas na enchente, outras soterradas, a maioria perdeu bens materiais e os meios de sustento. Já naquela cheia, houve corpos que nunca foram encontrados.

Memórias que ficam

Elio Böckel, 77, ainda mora na propriedade onde o bisavô, de sobrenome Musskopf, passou pela cheia de 1919. Naquele ano, a casa, o paiol e a estrebaria foram arrastados pela correnteza. Em 2024, as águas voltaram a atingir o terreno e entraram cerca de 30 cm dentro da residência onde mora com a esposa.

A casa não é a mesma em que o bisavô morava, mas fica no mesmo local e Böckel recorda das marcas que, por anos, lembravam da cheia de 1919 que, ao que tudo indica, foi maior naquele ponto. Além disso, diz que esta foi a primeira vez, em 50 anos, que a enchente entrou na residência.

Ilhados

A família Bolkenhagen mora na localidade de Forqueta, em Arroio do Meio, desde a década de 1880. Com terras na várzea do Rio Forqueta, gerações acompanham as subidas e descidas da água. Leonardo Franz, 34, lembra das antigas histórias que o avô, Arthur Bolkenhagen, contava.

“O vô sempre dizia que, no ano em que ele nasceu, em 1919, teve a maior enchente da história do Rio Forqueta”. Naquele ano, as águas teriam superado as metragens de 2024 na propriedade da família.

A residência, a quase 1,5 quilômetro da barranca e na parte mais alta das terras, ficou ilhada. “Pelo que meus bisavós contavam, em 1919, o Forqueta passou por cima da estrada principal, circundou toda a propriedade, coisa que não aconteceu agora em maio”, cita.

Marcas nas paredes

Embora em algumas localidades a cheia há 105 anos tenha sido maior do que a de maio de 2024, em outras, as últimas enchentes atingiram mais de um metro acima do que em 1919. Como é o caso da propriedade da família de Edson Felippe Essig, 58, em Picada Essig, Travesseiro.

O trisavô, Philipp Essig, foi um dos pioneiros da localidade e veio da Alemanha para povoar e abrir a picada. As gerações seguintes permaneceram na porpriedade, em uma residência um pouco acima da que Edson vive hoje com a família.

Ele lembra que, quando o avô decidiu construir a nova casa um pouco abaixo, entre 1934 e 1939, a esposa de Philipp ainda vivia e avisou a família do nível onde as águas de 1919 e 1873 haviam chegado, para servir de base à construção. Foi por isso que o segundo piso também foi erguido na estrutura. Em 2024, as águas ficaram na metade das janelas do primeiro andar.

O avô de Edson também lembrava daquela cheia, quando tinha apenas 10 anos. Ele contava que perto da propriedade, em Linha Atalho, Marques de Souza, houve um desmoronamento e uma família morreu soterrada. Quando os corpos conseguiram ser desenterrados, foi o jovem de 10 anos que conduziu os bois que puxavam a carroça com os mortos, até o cemitério evangélico de Forqueta.

No local, as sepulturas da família chamam atenção e marcam aquela tragédia há mais de 105 anos. Edson ainda lembra das marcas de outras enchentes, como a de 1873 e 1941, além da 2010, até então, a maior na localidade. Neste ano, as águas atingiram quase um metro a mais em relação a de 14 anos atrás. “Eu me criei aqui e nunca tinha passado por enchente. A primeira foi em 2010, quando perdi tudo. Agora essa foi ainda maior”, conta. Conforme os relatos passados por gerações na família, a cheia de 1919 foi quase meio metro maior do que a de 2010 na propriedade dos Essig.

A enchente de 1919

O que dizem os especialistas

A engenheira ambiental Sofia Moraes explica que, conforme os estudos, a enchente de 1919 afetou mais a bacia do Rio Forqueta. No Taquari, as águas chegaram um pouco acima dos 27 metros. “É difícil afirmar com precisão os pontos até onde a água chegou naquele ano. O que se tem são relatos de pessoas e são os pontos em comum nas diferentes narrativas que fornecem os dados mais acurados”.

Além disso, conforme Sofia, o volume de chuva não é igual em todos os locais e também cai em diferentes períodos de tempo. “Por isso, dependendo do ponto analisado, a água chegou ou não com mais rapidez e maior volume”, explica.

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