Com barcos de todos os tipos, coletes salva-vidas, por vezes, improvisados, mas com coragem para enfrentar a força das águas, as cheias revelam peças importantes para que cada vez menos vítimas sejam feitas. A enchente do início de maio deixou mais de 40 mortos e mais de 20 desaparecidos. Mas o número poderia ser ainda maior, não fossem os voluntários que se unem às forças de salvamento dos municípios.
No Vale, os civis fizeram a diferença. Mas o sentimento de gratidão é permeado pela vontade de ter feito ainda mais. Sommelier e empresário, Pablo Rodrigues de Paula, 44, e Juliano Hüther, 34, não são formados para salvar pessoas. Mas, desde as cheias de 2020, se voluntariaram para ajudar nos resgates. Na hora da ação, as profissões não importam, e a vontade de ajudar faz a diferença na operação.
Foi há quatro anos que um grupo de voluntários foi criado para auxiliar a Defesa Civil de Lajeado em casos de calamidade, como as enchentes. E, desde lá, foram feitos treinamentos e capacitações.
Na enchente de maio, Pablo e Juliano formaram uma dupla. Juntos, resgataram cerca de 300 pessoas. Entre os bairros Centro, próximo ao Parque dos Dick, e nas proximidades do valão, o bairro Conservas, e outros bairros de Cruzeiro do Sul, eles contam que o maior número de resgates foi feito nas transversais da Décio Martins Costa, em especial, de pessoas idosas. “Muita gente disse, moro aqui desde 1970, 1980, nunca veio água, agora tenho que sair”, conta Juliano.
“Na hora, tu só vai”
Para a dupla, um marco foi o resgate que fizeram no quarto andar de um prédio, onde não acreditavam que a cheia pudesse chegar. Outro, foi feito no bairro São Miguel, em Cruzeiro do Sul. Um jovem chegou na Defesa Civil implorando o resgate dos pais que estava em uma casinha já tomada pelas águas. O lugar era de difícil acesso e outras equipes não conseguiram chegar ao local.
“A gente falou, vamos tentar, e fomos”, conta Juliano. Ele lembra que a correnteza era muito forte e era arriscado seguir com a operação. “A gente já estava desistindo, mas vimos o filho gritando para os pais, estávamos a 300, 400 metros da casa. Tu olha aquilo e pensa, se fossem os meus pais, eu iria. Não é só porque são os pais desse rapaz que eu não vou. Deu aquele arrepio e eu disse, eu vou. Resgatamos eles”.
Pablo conta que as pessoas querem achar formas de agradecer. Em um dos resgates, senhoras que perderam toda a casa passaram em uma padaria para comprar bolacha para eles, como gratidão.
“É muito louco, porque na hora, tu só vai. A gente come mal, fica com frio, molhados, mas não arredamos o pé, porque tu ficar ajudando te dá uma adrenalina e tu não consegue ir embora. Tu pensa, e se precisarem de ti e tu não estiver ali”, comenta Pablo.
Ele também recorda de um resgate feito de madrugada, no Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul, de três senhoras, uma delas de 93 anos, que tinha dificuldade de locomoção. A operação levou cerca de 3 horas e contou com uma equipe de bombeiros e do Exército, além dos dois voluntários.
Eles contam que os barcos utilizados nos resgates, assim como equipamentos mais simples, são dos próprios civis que, agora, solicitam ao poder público equipamentos e embarcações adequadas para qualificar o trabalho e garantir a segurança das pessoas em uma próxima operação.
Cenário assustador
Depois de sair de casa, em Arroio do Ouro, interior de Estrela, com a esposa e as duas filhas, Ismael Diel, 40, voltou para a localidade para resgatar os pais, a irmã e os tios. Ele conta que a água já atingia os 20 metros quando levou a família para um local mais alto, para fugir da cheia. Mas o rio subiu mais seis metros na cidade.
“Minha irmã começou a me ligar, mas era noite, escuro, tinha que esperar até o amanhecer. Ainda tínhamos internet e eu disse pra ela ficar viva até a manhã seguinte. Eu ia buscar ela”.
Ele lembra de não ter conseguido dormir naquela noite e, assim que clareou o dia, conseguiu chegar à localidade e encontrou uma embarcação. Diel trabalha com ar condicionado, mas cresceu nas margens do rio e, apesar de não ter um barco, sabia como dirigir um.
Uma vez nas águas, o primeiro destino foi a casa da família, para resgatar os que haviam ficado. “Quando eu apontei o barco, já saltou gente de tudo que é casa, abanando, pedindo socorro. Eu só pedia que esperassem, mas que voltaria para buscá-los”. A correnteza do rio era forte e começaram a se formar ondas. De acordo com Diel o cenário era assustador.
“Toda vez que a gente ia embora, eu pedia para as pessoas me ajudarem a embalar o barco, para ele não virar. Balançava, mas fomos indo, resgatando mais dois, três, conseguindo resgatar mais famílias”.
Perto do meio dia, os resgates ficaram mais difíceis e tiveram que parar no fim da tarde do mesmo dia. “Começou a ficar violento, tu não enxergava mais as casas. O último resgate que fizemos foi de tarde, na casinha de dois senhores, que conseguimos salvar”. Mesmo sem experiência, Diel resgatou 10 pessoas na localidade e a tarefa se transformou em aprendizado.
“Eu faria tudo de novo, a gente fica com o sentimento de que poderia ter feito um pouquinho mais. Mas se pude ajudar alguém, já fico feliz”.
“Eu foco em vidas”
Nas últimas quatro enchentes que ocorreram em Encantado e região, Cristiano dos Santos, 48, se voluntariou para ajudar. Mesmo não atuando na área como profissão, ele adquiriu técnica e experiência que o permitiram salvar pessoas. Além disso, por atuar com rafting, rapel, e outros esportes de aventura, tinha equipamentos necessários para o serviço.
“Na última enchente, o pessoal da base me ligava, a prefeitura, a Defesa Civil, me diziam onde eu tinha que atuar, quem eu tinha que resgatar Eu chegava lá, fazia o resgate, carregava o equipamento e voltava para um outro ponto”, recorda.
Com pé de pato, colete salva-vidas, capacete, lanterna à prova d’água, botes e jet ski, Santos enfrentou a correnteza das águas. Os resgates foram feitos nos bairros Lago Azul, Planalto, Vila Moça, Centro, Porto 15 e na comunidade de Jacarezinho.
Ele conta que, além da correnteza, havia outros obstáculos pelo caminho, como antenas parabólicas, cercas, telhados e muros que dificultaram o trabalho.
“Eu cheguei em prédios para retirar pessoas, que eu entrei com o bote, murchei ele, e saí em outra janela com a pessoa dentro. Eu tinha essa mobilidade, então podia fazer os resgates a qualquer hora do dia”.
Na cheia do início de maio, ele resgatou cerca de 70 pessoas. Mas o que mais fica marcado são as que Santos não conseguiu salvar. “O pior sentimento é saber que tem pessoas para serem resgatadas, e não poder chegar lá, porque não existe herói, existe um cálculo, um raciocínio que se faz antes de começar um resgate”.
Santos ainda diz que poucas pessoas sabem nadar, o que aumenta ainda mais os perigos. “Eu não ajudo a tirar lama, roupeiro, mudança. Eu foco em vidas. O diferencial desse pessoal voluntário é que eles têm muita força de vontade e determinação”, reforça.
“Sozinho, tu não é nada”
Em Arroio do Meio, as operações iniciaram na terça-feira, 31, na Associação de Proteção aos Animais Arroiomeenses (Apaam), com o resgate de 70 cães feitos em dois barcos. Desde as cheias de 2020, entre os principais voluntários do município nos salvamentos, estão Clerio Varella, Diego Cunha, Fabrício Leal e Vanderlei Grabin.
Sem barcos naquele ano, a prefeitura solicitou o auxílio dos moradores para resgatar pessoas ilhadas. O mesmo trabalho se repetiu em setembro e em maio deste ano. Graças aos voluntários, nenhuma morte foi registrada.
Um homem continua desaparecido na cidade e os voluntários também auxiliaram os bombeiros nas buscas. Além de distribuírem mantimentos e donativos. Com a queda das pontes, o trabalho de travessia entre Arroio do Meio e Lajeado sobre o Rio Forqueta foi iniciado por eles, que transportaram, no início, três médicos.
“No sábado, dia 4, pegamos nossos barcos e começamos a atravessar a comunidade. Na segunda, mais gente veio ajudar e, em duas semanas, éramos 19 voluntários. Depois, veio o Exército”, conta Fabrício, que ainda hoje faz a travessia, em especial, aos funcionários que trabalham na reconstrução da Ponte de Ferro.
Com cerca de 70% da cidade atingida pela enchente, os voluntários relatam os desafios durante os resgates. “A correnteza é muito forte. Tu tem que cortar o cabeamento por conta da eletricidade. Fazemos tudo em dupla. Sozinho, tu não é nada”, comenta Diogo.
Sem internet ou outro tipo de comunicação, os socorros eram feitos no boca a boca. Assim que os moradores viam os barcos pelas águas, gritavam pedindo ajuda. Mais de 60 pessoas foram resgatadas.
Eles contam que duas embarcações foram perdidas quando uma das passadeiras do Exército se soltou após o Forqueta voltar a subir menos de duas semanas depois da primeira cheia de maio. Empresários se mobilizaram para comprar outros barcos e o trabalho dos voluntários seguiu.