Nos quase 200 anos de colonização do Vale do Taquari, não se tem registro de uma enchente tão grande e destrutiva quanto à deste mês. Como falar do passado, quando o presente é a história?
O rio alcançou os 33,35 metros em Lajeado no dia 2 de maio, superando a marca histórica de 1941, de 29,92 metros. Em 2018, a engenheira ambiental Sofia Moraes elaborou um estudo que analisava as enchentes nos últimos 36 anos.
Se o Taquari seguisse o mesmo comportamento, a probabilidade de ocorrer uma cheia que superasse os 30 metros era de 0,01%. Isso vai ao encontro do imaginário popular de que uma enchente maior a de 1941 jamais aconteceria.
Além disso, um estudo recente aponta que a tradicional metragem de 29,92 metros estaria incorreta e que, na verdade, em 1941, o rio Taquari teria chegado somente aos 28,87 metros. De acordo com o estudo, as três maiores cheias da história da região teriam acontecido no período dos últimos nove meses e, por isso, também reconfiguram a probabilidade de inundações desse porte.
1873
Pesquisas citam que uma grandiosa enchente avançou sobre a região em 1873. Até o início deste mês, esta inundação era uma das maiores que se tinha registro. O historiador Wolfgang Collischonn considera possível que, em 1873, o fundador de Lajeado, Antônio Fialho de Vargas, tenha anotado os pontos até onde a enchente chegou.
Talvez, Fialho tivesse levado em consideração essas marcas ao doar os terrenos para a praça, a igreja e o cemitério da cidade. Já que, nas cheias de 1941 e de setembro de 2023, as águas não alcançaram esses locais.
A grande enchente de 1873 também pode ter motivado a criação da Paróquia Santo Inácio de Loyola, em 1881. As constantes cheias impediam que os padres, residentes em Estrela, viessem atender a pequena vila de Lajeado. Assim, uma igreja própria foi construída ainda no século XIX.
Além disso, foi essa inundação que incentivou a construção da Casa do Morro de Cruzeiro do Sul. Em 1873, a casa da família Azambuja, próxima ao rio, foi destruída pela força das águas. Assim, o Coronel Primórdio Centeno Xavier de Azambuja ergueu uma nova estrutura no alto do morro, longe do rio.
1941
Ninguém acreditava que a enchente de 1941 poderia ser superada. Em Lajeado, relatos citam que a água do rio Taquari teria chegado até a rua Borges de Medeiros, quase no Colégio Madre Bárbara. Neste ano, o rio alcançou quase dois metros dentro da escola e avançou duas quadras além.
Poucas pessoas viveram as duas enchentes, separadas por 83 anos. Moradora de Lajeado, Ernesta Kerta de Souza Pfaff, 96, conhecida como Dona Guerta, é um dos raros exemplos. Hoje, ela não mora em área de risco, mas, a cada vez que as chuvas intensas chegam ao município, ela relembra de 1941, quando, aos 13 anos, ajudou a subir os móveis na casa da avó, no centro da cidade.
Naquela época, com pouca habitação, os danos não foram tão severos. Ela lembra que a água era limpa e as crianças brincavam no rio. A destruição teve uma proporção bem menor, já que Lajeado era ainda um pequeno núcleo urbano.
Em 1941, choveu no Rio Grande do Sul por 20 dias seguidos entre abril e maio. Não somente a bacia Taquari-Antas transbordou, como em Porto Alegre, o Guaíba também inundou a cidade, chegando aos 4,7 metros. Fotos mostram barcos na rua das Andradas. Neste ano, a água subiu até os 5,25 metros na capital.
Na capa do jornal O Taquaryense de 10 de maio de 1941 a percepção da época: “Os habitantes desta cidade assistiram, com a atual cheia do Rio Taquari, um espetáculo doloroso que jamais se apagará da memória dos que tiveram a ventura ou desventura de assisti-lo.”
1956
Naquele ano, Roca Sales foi um dos municípios mais atingidos, as ruas centrais ficaram inundadas pelas águas. Conforme o jornal A Voz do Alto Taquari de 1956, em Roca Sales, a enchente superou a de 1941.
No mesmo jornal, datado de abril, um relato que muito se assemelha à tragédia deste ano. “O povo de Lajeado ficou consternado. As ruas se encheram de curiosos. Nas esquinas se viam grupos de famílias pobres, sem lar, sem nada.”
2010
Entre as maiores cheias da região, está a enchente dos rios Forqueta e Fão de 2010, que devastou as cidades de Marques de Souza e Travesseiro. O dia era 4 de janeiro, por volta do meio-dia, quando o nível da água começou a subir de forma rápida.
Relatos da época contam que a água invadiu as casas em menos de 1h e impossibilitou a retirada de materiais. O grande volume de precipitações aumentou o nível dos rios, que arrastaram casas. Apesar dos prejuízos, nenhuma morte foi registrada. Relatos falam que só não houve óbitos porque a enchente veio durante o dia.
Os campings, famosos em Marques de Souza, ficaram irreconhecíveis. Uma das cenas mais chocantes foi o Cemitério Católico de Tamanduá, onde as covas foram reviradas. Crânios e ossos estavam espalhados pelo terreno. Na época, os governos municipais falavam que eram necessários mais de R$ 20 milhões para recuperar pontes, estradas e pinguelas afetadas pela cheia.
2023
Em setembro do ano passado, o rio Taquari chegou aos 29,62 metros, ainda 30 cm abaixo da cota máxima da cheia de 1941. Entretanto, um estudo recente publicado por historiadores e especialistas na área, como Sofia Moraes, Walter Collischonn, Franco Turco Buffon e Rafael Rodrigo Eckhardt, ratifica a informação.
O documento “Revisão e consolidação da série histórica dos níveis das cheias do rio Taquari em Lajeado de 1939 a 2023”, mostra que houve um erro na estimativa da posição da régua que existia na época para a mediação do rio. De acordo com os especialistas, caso a cheia de 1941 ocorresse hoje, ela mediria 28,87 metros na régua atual.
É isso que se observa no Colégio Evangélico Alberto Torres (Ceat) de Lajeado. Nos anos 1960, a escola ampliou sua estrutura e levou em consideração o alcance das águas de 1941.
“Diziam que nenhuma enchente superaria aquela. A laje mais baixa do prédio respeitou o nível máximo que a água chegou, de 29,92m”, conta o professor Ladair Rahmeier, que acompanhou a construção na época. Em setembro, no entanto, a cheia superou em quase 80 cm a altura do prédio do Ceat.