De um lado, aqueles que defendem a importância de temas como racismo ou sexualidade serem abordados nas escolas. De outro, a preocupação com o tipo de linguagem disponível aos estudantes. O livro “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório, continua dividindo opiniões, mas acende um alerta ainda maior entre as famílias e a comunidade escolar: a forma e a necessidade de tratar sobre assuntos sensíveis com as crianças.
Especialistas afirmam que evitar determinados temas e proibir algum assunto pode deixar os jovens ainda mais curiosos e, por vezes, estimular que procurem informação em lugares que a própria família não recomendaria, seja com os colegas ou na internet. Os profissionais ainda destacam a importância de encontrar caminhos para abordar temas possivelmente sensíveis de acordo com a necessidade e a maturidade da criança ou do adolescente.
E, por mais que a família trate sobre esses temas em casa, na escola eles ganham outra abordagem. Se bem explicado no contexto familiar, o ambiente escolar se torna mais um espaço de debate do que de simples exposição ao assunto. Além disso, a própria arte e literatura podem ser aliadas na busca por ampliar as percepções dos alunos e expandir o conhecimento sobre o mundo. No caso de “O avesso da pele”, que fala sobre o racismo, essa foi a intenção.
Depois da polêmica
A polêmica ao redor do livro iniciou na última semana, quando a diretora da Escola Estadual Ernesto Alves de Oliveira, Janaína Venzon, de Santa Cruz do Sul, se manifestou e expressou críticas ao governo federal por enviar a obra às escolas, alegando que o livro possui “vocabulários de baixo nível”, se referindo a uma cena em que o autor narra uma relação sexual.
Em um vídeo divulgado, Janaína classificou a obra como “nojenta” e solicitou que o Ministério da Educação (MEC) recolhesse os 200 exemplares enviados à instituição. Em resposta, o MEC contradisse a versão da diretora, esclarecendo que o romance está incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) desde 2022, e foi vencedor do Prêmio Jabuti em 2021.
Além disso, afirmou que as obras são enviadas apenas por solicitação dos educadores e das escolas, garantindo o caráter democrático na escolha dos materiais didáticos para serem trabalhados em aula.
Diálogo
Na região, o livro também teve repercussão por parte dos pais de alunos. Diretor do Colégio Evangélico Alberto Torres (Ceat), Rodrigo Ulrich ressalta o papel conjunto da escola e da família na educação dos jovens e afirma que a instituição está sempre aberta ao diálogo.
“Assim, conseguimos ter retornos, ouvir o ponto de vista de cada um, esclarecer sobre ações da instituição e, especialmente, dialogar de modo que reforcemos a nossa atuação conjunta”.
O escritor e especialista em comportamento humano, Gabriel Carneiro Costa, também destaca a importância do diálogo dentro de casa. “Os pais fazem movimentos com a escola ou até mesmo com o MEC para questionar. E eu acho que isso é legítimo. A gente vive num país democrático. Se eu entendesse que não está compatível, eu também iria me manifestar”, afirma.
Por outro lado, Costa defende que é importante conversar com os filhos e entender que eles já podem ter acesso a esses conteúdos e linguagens até mesmo em casa. “Hoje em dia, muito mais do que sempre foi. Então, o debate com os filhos, eu acho sempre a melhor solução”.
Estudante do 2º ano do Ensino Médio do Ceat, Luiza Katz Weiand, 15, acredita que a obra seja indicada ao Ensino Médio justamente porque é quando os alunos estão mais maduros. Além disso, diz que a cena citada é uma pequena parte de um livro de 200 páginas. “A obra em si tem uma carga muito importante. Não dá para resumir a história inteira escrita por um autor brasileiro premiado, a um parágrafo do livro”.
Discussões saudáveis
A professora da Univates e doutora em linguística Kári Forneck destaca que quando uma instituição escolhe um conjunto de obras para debater com os alunos, a perspectiva é sempre de que o lugar da literatura na sala de aula seja para ampliar horizontes.
“A escola oferece lentes diferentes, complexas, múltiplas, que ajudam jovens a enxergar e entender o mundo que nos cerca”. Ela diz que a literatura é uma das melhores ferramentas para debater assuntos importantes.
Kári avalia “O avesso da pele” como uma obra comovente sobre como o negro é tratado na sociedade e os efeitos disso nas relações. “É muito saudável discutir com os jovens esse tema porque é parte da nossa vida. Precisa debater e, com um adulto, professor, mediador, é o melhor lugar para fazer esse tipo de discussão”.
O desafio da leitura
De acordo com a educadora, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), o Brasil costuma se enquadrar nas últimas colocações. Um dos critérios de avaliação é se o jovem leitor é capaz de diferenciar o fato, da opinião sobre o fato. Kári reforça que essa mesma habilidade é requerida em outras provas e é percebido que os jovens brasileiros não a desenvolvem.
“A opinião das pessoas acaba sendo formada com base na opinião de outros. Não deveria ser assim. As pessoas constroem suas opiniões sem ter a clareza do que está sendo posto em cena”.
Um dos motivos para essa realidade é a falta de letramento. Ela acredita que a leitura ter que ser obrigatória na escola já é um problema. “Essa ideia de que a leitura não faz parte do cotidiano e que deve ser meio forçado diz respeito a essa imensa dificuldade de entender o que a gente lê, de se tornar um adulto que ingressa na faculdade e não consegue entender o que está lendo na sua área”.
Outro motivo é o prazer estar mais atrelado às telas do que à leitura. O desafio, segundo ela, tende a crescer.
Visão de mundo
O exemplo deve vir da família. “A criança precisa ver os adultos importantes na vida dela, como pais, professores, lendo também. Porque se os adultos não estão lendo, ela vai seguir o mesmo caminho”, destaca Kári.
Com a internet e as redes sociais fortalecidas, outro desafio é prender a atenção do leitor por mais de 30 segundos, que é o tempo de captura nas plataformas como Instagram e Tik Tok. Na escola, essa leitura é estimulada, mas deve ser feito o mesmo em casa.
“O tempo de concentração na leitura diminuiu, a pessoa não consegue ficar muito tempo concentrada. Os jovens não querem mais histórias longas, querem o mais imediato”.
O esforço das famílias e da escola vai contra essa tendência. Além de incentivar o consumo de arte, de teatro, de literatura, para que o jovem passe a entender melhor o mundo e as relações entre as pessoas.
Fora das telas
Para o médico psiquiatra Bruno Borba, é preocupante quando os pais não trabalham temas importantes em casa. Seja sobre sexualidade, racismo, entre outros. “São temas que devem ser abordados desde a infância”.
O uso excessivo das telas também é uma preocupação do profissional. Ele conta que em todas as consultas solicita que os pacientes mostrem o que assistem no YouTube, por exemplo. Em grande parte dos casos, algum conteúdo não é adequado à idade.
“Essas crianças são expostas a muitas coisas, sem filtro nenhum, sem orientação”. Segundo Borba, hoje, os mecanismos de “recompensa”, como a liberação da dopamina no corpo, são mais frequentes nas telas do que na leitura. Por isso a importância de incentivar a prática.
Como abordar assuntos sensíveis com as crianças
- A proibição sobre um assunto pode gerar mais curiosidade na criança e ela pode ir buscar respostas em locais que os pais não indicariam;
- Quando a família não sabe de que forma abordar o assunto, é importante dizer à criança que eles vão conversar sobre o assunto em uma outra hora;
- Os pais devem avaliar a idade e maturidade de cada criança para saber de que forma abordar um assunto “delicado”;
- Tratar de assuntos importantes não é só papel da escola, e é importante que a criança já tenha tido conversas em casa, com os pais, para se sentirem seguras.;
- Às vezes, a família está preparada para falar e a criança não. Não saber o momento certo pode ser constrangedor e invasivo para ambos os lados;
- A devolutiva do adulto pode ampliar ou bloquear espaços de discussão, dependendo do modo como for abordado.