Tradições desencantadoras

Opinião

Jandiro Koch

Jandiro Koch

Escritor

Colunista do Caderno Você

Tradições desencantadoras

Escrevo após finalizar um mês de aulas intensivas no Mestrado de Ambiente e Desenvolvimento na Univates. O curso, felizmente, em sua maior parte, é presencial. Durante as semanas, não deixei de frequentar as redes sociais, embora com a assiduidade muito menor do que a habitual.

Um dos temas em alta, na internet, foi um rodeio realizado em Estrela. Não demorou para acontecer um embate entre defensores dos bichanos, especialmente dos bovinos, e os autoafirmados tradicionalistas. Os últimos sustentaram ser algo da “nossa tradição”, pelo que foram retrucados, porque, de fato, o rodeio é uma prática importada dos Estados Unidos. Lá, por sua vez, a origem está entre os mexicanos, que, indo mais ao passado, incorporaram elementos da cultura espanhola – desse país, conhecemos as famigeradas touradas. Chegando ao Brasil, em São Paulo, tardiamente, em 1947, não há tradição “nossa” na festa de peão, como é conhecida em outros lugares.

Nesse confronto, alguns conceitos deveriam emergir. O antropocentrismo (pensamento filosófico que aponta o umbigo do homem no centro do universo); o especismo (que elucida como o humano se coloca no topo de uma pirâmide de relevância, abaixo estariam as demais espécies, todas disponíveis ao seu usufruto); a senciência (o reconhecimento de que os outros seres vivos também sentem, que experimentam estados internos de conforto e desconforto, frustração e dor); e os animais e a natureza como sujeitos de direitos (algo cuja realização depende do dever jurídico e da capacidade contratual da humanidade).

Entender esses raciocínios permitiria compreender melhor a si. A buscar as implicações antes de, diante de incontáveis formas de entretenimento disponíveis, se levantar e se dirigir a um campo aberto para assistir à perseguição de cabeças de gado estressadas.

Este ensaio poderia seguir no convite à autorreflexão. Sugere-se que a melhor escrita é aquela que não dá respostas. Mas, neste momento, cabe menos apostar nessa possibilidade retórica do que afirmar: Não deveríamos mais naturalizar o sofrimento animal. Certamente a assertiva leva ao conflito. O direito dos animais, percebe-se, chega a causar incômodo inclusive entre alguns ditos progressistas. Sustentam – antropocentricamente – haver muita gente passando fome, sem acesso ao mínimo, e que, portanto, as atenções deveriam, primeiro, se voltar para os humanos (especismo).

Nas aulas do Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento, do componente curricular “Cultura, Cidadania e Ambiente”, passei a acomodar, internamente, o imbróglio entre tradição, conservadorismo e críticas de alas progressistas. Diante de uma sociedade capitalista desigual, cada vez mais consumista, na qual a fama – como youtuber, tiktoker ou influencer – pode decorrer de vídeos em que se desembrulha compras de quinquilharias e inutilidades, talvez seja necessário ver diferente.

Enxergar o consumismo desenfreado e os maus-tratos aos animais relacionados a uma mesma coisa: um narcisismo enorme, que nos tornou incapazes de construir relações menos desiguais com os outros e com a natureza – da qual, somando mais de oito bilhões de habitantes, extraímos cada vez mais sem pensar em limitações e consequências. Talvez até se reflita, mas a práxis não acontece.

Com a inspiração em outros grupos sociais ou a partir de uma criação, não é a hora de estabelecer “contratos” mais justos entre todos os seres, que sejam a base de tradições menos desencantadoras?

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