Argentinos procuram recomeço em Lajeado

LONGE DE CASA

Argentinos procuram recomeço em Lajeado

Argentinos procuram recomeço em Lajeado
O primeiro a chegar em Lajeado foi Ariel. Depois Fernando, Manuel, Yan, Sebástian, Liz, Matías, Samuel, Malena e Damaris. Ao centro o empregador, Irilei Gonçalves (Foto: Filipe Faleiro)
Vale do Taquari

O sotaque é inconfundível. Está presente quando os clientes vão servir as carnes na chapa, na hora de pesar o almoço, na copa e na abordagem dos garçons. Na maior parte das vezes, fácil de compreender. Complica um pouco na hora do acerto no caixa, para entender a pronúncia dos números.

Já para os trabalhadores, o português, ainda mais quando falado rápido, exige bastante concentração. “A maior barreira é o idioma”, afirma a auxiliar de cozinha, Dámaris Alejandra Frutos, 23. Ela é uma das funcionárias do Restaurante Planeta Terra, no Shopping de Lajeado.

Ao todo são dez “hermanos” da cidade de Posadas, localizada no nordeste da Argentina, em Misiones, capital da província. Fica na fronteira com o Paraguai e tem mais de 300 mil habitantes. “Hoje, podemos dizer que 80% da nossa força de trabalho é de estrangeiros. É um casamento que tem dado super certo”, avalia o proprietário do estabelecimento, Irilei Gonçalves.

O intercâmbio cultural e a ajuda mútua começou em outubro de 2022. O primeiro a chegar foi Ariel Soares de Almeida, o mais “experiente” da turma. Com 43 anos, deixou a mulher e dois filhos no país vizinho para tentar a sorte em terras tupiniquins.

Lajeado foi um acaso do destino. “Minha ideia era subir para Balneário Camboriú”, admite. Chegou na cidade na sexta-feira, 30 de setembro. No mesmo dia, conversou com Gonçalves. “Pediu se tinha algo que ele pudesse fazer. Já tinha experiência na cozinha.”, relembra o empresário.

Domingo, 2 de outubro, já estava na equipe. Depois dele, outros chegaram. Apenas um dos conterrâneos não se adaptou e decidiu voltar. Neste período de quase um ano, foram mais nove argentinos, com idade dos 19 aos 27 anos. Entre eles, está Fernando, 19, o filho mais velho de Ariel. “Minha esposa e o caçula (de 9 anos) vieram, mas voltaram. O pequeno não se adaptou na escola por causa do idioma”, conta Ariel.

A comunidade de argentinos em Lajeado é unânime quando perguntada sobre os motivos da imigração: as condições econômicas. Com uma inflação que supera 100% no ano, a população sofre com a variação de preços, o que interfere no custo de vida e nas vagas de trabalho. “Em Posadas, as empresas que não fecharam estão paralisando os trabalhos”, resume Samuel Esteban de Oliveira, 19. “Viemos atrás de oportunidade. O Brasil consegue garantir uma renda mais estável”, enaltece Manuel Guillermo Rodríguez, 21.

Pesquisa mais recente do Departamento de Economia e Estatística (DEE), ligado a Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão, ainda não tabulam essa nova fase da imigração no RS.

Os dados atuais avaliam de três fontes (carteira assinada, sistema de imigração e CadÚnico). Até fevereiro do ano passado, haviam quase 94 mil estrangeiros no RS. As nacionalidades com mais presença são uruguaios, haitianos e venezuelanos.

Contraste cultural

Afora a rivalidade no futebol, Argentina e Brasil tem algumas semelhanças, em especial quando diante das características do Rio Grande do Sul. Ainda assim, a visão dos novos imigrantes sobre a nova residência mudou bastante neste quase um ano de estadia. “Eu pensava que no Brasil todos dançavam pelas ruas, que seria alegria o tempo inteiro. Me surpreendeu como as pessoas são reservadas”, compara Liz Maribel Barzala, 19.

Na alimentação, muitas similaridades. O mate companheiro do dia a dia e, nas refeições, a base arroz, feijão, carnes e saladas. “O que mais sentimos falta é da família, dos amigos. Triste ver a Argentina passando por isso. Nossa esperança é que a situação melhore para no futuro voltar”, diz Sebastian Vera, 27.

Em crise faz 40 anos

Falta de crédito para buscar recursos externos, atraso no pagamento de empréstimos, diversas moedas internas em circulação e a desvalorização do peso argentino estão no centro das dificuldades enfrentadas pela nação.

“A crise na Argentina começou faz pelo menos quatro décadas. Hoje, a situação no país vizinho é parecida com o que o Brasil enfrentou no início da década de 1990”, ressalta a economista, doutora em Desenvolvimento Regional e professora da Univates, Cintia Agostini.

Junto com isso, o agronegócio sofre com as seguidas intempéries climáticas. “Estamos falando de gestões de governos que foram muito expansionistas, que subsidiaram muito. Faz muito tempo que o governo argentino gasta mais do que arrecada. E esse dinheiro todo circulando na economia gera inflação que hoje passa dos três dígitos”, completa a economista.

Como consequência, oscilações quase diárias no preço de produtos básicos à população. “Quando recebemos o salário, precisa correr no mercado e gastar tudo. No outro dia, o dinheiro pode perder o valor”, exemplifica Ariel de Almeida.

e acordo com Cintia, esse quadro de hiperinflação representa perda constante de poder aquisitivo e o próprio empobrecimento da sociedade.

“Nutrir o desejo de retornar ao país de origem é uma característica”

A Hora – O Brasil e o Vale é atrativo para imigrantes? Por quê?

Dalmáz – Sim. Por mais que a economia nacional tenha entrado em um período de recessão, o Brasil mantém um protagonismo na parte sul da América. Desde o início do século, se criou condições atraentes para os imigrantes, não apenas aos latino-americanos.

Existe uma combinação entre oportunidades de trabalho e o discurso de inclusão. Tais movimentos fez o país virar uma opção para muitos estrangeiros. Tanto que esses fluxos resultaram na nova lei de imigração de 2017. Pelas regras, há facilidades de acesso à documentação e ao exercício de cidadania aos imigrantes no Brasil.

– A nova comunidade que se forma chega para trabalhar, em busca de um futuro melhor, como eles mesmos dizem. Ao mesmo tempo, desejam que os problemas no país sejam resolvidos para voltarem. Esse é um comportamento comum nos fluxos migratórios contemporâneos?

Dalmáz – Nutrir o desejo de retornar ao país de origem é uma característica comum dos imigrantes, tão logo reúnam condições para isso. O contato com os imigrantes haitianos e senegaleses em Lajeado, por exemplo, revelou o quanto essa ideia é difundida.

Em resumo, a presença no exterior pode ser encarada como um momento transitório, dentro do qual é possível atuar em áreas profissionais diferentes daquelas da formação de origem. Um novo lugar, um novo idioma, uma cultura diferente, um ofício alternativo fazem parte disso. Embora a ideia de permanecer nunca esteja afastada, pois, a migração para um lugar envolve uma ideia do que se encontrará no destino.

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